A TEOLOGIA DA INFÂNCIA ROUBADA

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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7 min readSep 24, 2019

Por Bruno Rocha

A teologia da criança se soma ao conjunto de teologias latino-americanas surgidas no seio da teologia da libertação. Essa teologia revisita os textos bíblicos no intuito de olhar especificamente para a infância como lugar hermenêutico (interpretativo) da revelação de Deus. Ela localiza não só as diversas possibilidades de análises e reflexões sobre a infância de Jesus e outros personagens registrados nas escrituras, como investiga o arquétipo do “ser criança” em todos os seus aspectos físicos, psicológicos, emocionais, espirituais, existenciais, como possibilidade de se experimentar o mistério da “realidade absoluta” contido na mensagem do evangelho.

Alguns textos clássicos se somam ao arcabouço dessa reflexão, como o episódio em que Jesus coloca uma criança no meio dos discípulos que disputavam a “melhor” posição no Reino dos Céus, e diz: “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus. Aquele, portanto, que se tornar pequenino como está criança, esse é o maior no Reino dos céus”. (Mt 18. 3 e 4); ou quando algumas crianças são levadas à Jesus para que ele as abençoasse, e os discípulos, novamente enrijecidos como a lei, queriam impedir que essas chegassem até o mestre. Nesse momento, Jesus diz: “Deixai as crianças e não as impeçais de vir a mim, pois delas é o Reino dos Céus” (Mt 19.14).

Muito poderia ser falado sobre essas duas passagens bíblicas como, aspectos históricos da condição da criança somado a figura da mulher/maternidade naquela época/território, a compreensão de Jesus em relação as condições necessárias para o “acesso” ao Reino dos Céus (aqui implicado a humildade mencionada), ou mesmo as características desse Reino onde a irreverencia, a ousadia, a inocência, a alegria e a pobreza são celebradas e queridas em detrimento as posições de poder, censura, racionalidade dura e falta de imaginação de homens adultos, chamados discípulos. Outras histórias poderiam aqui se relacionar como, o nascimento vaginal de Jesus — aqui contemplado uma perspectiva clássica, mas que pode ser potente, do nascimento virginal onde o Espírito Santo (Ruah), que no grego é uma palavra feminina, se revela primeiramente a Maria provando que o ser mãe não vem do homem ou de sua autorização — e sua infância pobre na galileia, as figuras clássicas de infância contidas nas histórias de José e Davi ou a infinidade de conceitos teológicos (aqui se soma a perspectiva de análise feminista da bíblia) sobre filiação não só de Jesus, mas da humanidade a Deus.

Portanto, nos atentaremos a outras três situações que nos ajudaram a entender o que a teologia da criança tem a nos dizer não só sobre o passado, mas também sobre o presente, e como esse último poderá influenciar noções futuras sobre o entendimento de infância e o seu significado para a fé e para a sociedade.

A primeira história se passa no primeiro testamento, onde Naamã, chefe do exército do rei de Aram, fora abençoado por Iaweh em uma batalha contra o próprio povo de Israel levando assim, muitos hebreus como escravos para a terra dos arameus. Como diz o relato bíblico, Naamã, um corajoso guerreiro, era leproso. Sabe-se que a história termina bem, pois o profeta Eliseu ordenará que o chefe do exército mergulhasse sete vezes no rio Jordão para que obtivesse a cura, e assim foi feito. Muito se fala nessa história sobre o milagre contido nos mergulhos e a atuação de Eliseu, mas pouco se fala da menina de Israel que fora feita escrava, e que trabalhava junto a mulher de Naamã em sua casa. Ao ver a situação de grave doença daquele que a mantinha em cárcere, a menina israelita sem nome, menosprezada não só enquanto escrava, mas enquanto história pelo próprio relato bíblico que minimiza sua participação e invisibiliza sua identidade enquanto mulher e criança, faz o que elas e os palhaços sabem de melhor, trazer esperança: “Ah! Bastaria meu amo se apresentar ao profeta de Samaria! Ele o livraria da lepra”. (2Rs 5.3)

Os outros dois episódios importantes nessa reflexão são parecidos, mesmo que separados pelo tempo e território. O rei do Egito, com medo de que o povo hebreu se fortalecesse em sua terra e conseguisse se organizar contra aquela situação de escravidão, vai à duas parteiras principais dos israelitas (Sefra e Fua) e diz: “Se for menino, matai-o. Se for menina, deixai-a viver” (Ex 1.16). É interessante observar a desobediência a essa ordem por parte das parteiras. O texto diz que, por serem tementes a Deus, elas não fizeram aquilo que foi ordenado com um alto risco de sofrerem todo tipo de consequência pela atitude. O midrash (comentários míticos da tradição judaica ao texto sagrado) conta que os meninos jogados no rio não se afogavam. Eram arrastados até cavernas próximas onde Deus ali colocava duas pedras na boca daquelas crianças, uma saia leite e outra mel, mantendo a vida dos pequenos. Deus também salvava os meninos permitindo que pudessem respirar na água como peixes, assim, quando o faraó cancelou o decreto, os meninos saíram vivos do rio.

Algo semelhante acontece na palestina. “Tendo Jesus nascido em Belém da Judeia, no tempo do rei Herodes, eis que vieram magos do Oriente a Jerusalém” perguntando onde teria nascido o rei dos judeus anunciado pela estrela no céu. Herodes ao ouvir tal afronta contra o seu poder entre os judeus, pede para que quando eles achassem o que estavam procurando, voltassem e lhe dissessem onde aquela criança estava. Ao perceber que os magos não voltariam Herodes “mandou matar, em Belém, e em todo seu território, todos os meninos de dois anos para baixo”. (Mt 2.16) A história é triste, e o massacre sistemático contra crianças acontece novamente. José consegue fugir com Maria e Jesus, paradoxalmente, para o lugar que antes houvera história parecida. O caminho de libertação do povo hebreu — por intermédio de Moisés, sobrevivente da primeira matança — em saída do Egito e em direção à terra prometida que apontava (além de território) à esperança messiânica, agora recebe aquele que sendo a esperança prometida, foge de igual modo ao massacre estatal rumo à sobrevivência.

Esses três relatos nos revelam aspectos importantes da reflexão sobre a teologia da criança. O primeiro é que os estados e os poderes são sistemáticos no assassinato, prisão e escravidão de crianças. Sua prática é bélica e violenta e, se não há parteiras (Ex 1.15–22) estrategicamente mentirosas, corajosas e espertas como aquelas israelitas do Egito (que deixaram as crianças sobreviverem), o estado vence e mata nossa infância. Segundo, a infância é uma constante ameaça aos poderes. Sabe-se que na criança, além do que ela representa no presente momento de sua vida, reside a renovação, o fortalecimento do povo, a libertação (tanto em Moisés como em Jesus), a possibilidade de enfrentar as opressões que os governos incidem ao povo. No caso, o povo hebreu estava primeiro sob o domínio do Egito e depois sob o domínio Romano. Dois governos fortes e opressores, mas que se veem ameaçados pela revolução irreverente e a esperança libertária do ser criança.

Percebe-se, assim, que não é de hoje o interesse do estado em assassinar nossas crianças. Os lugares pobres e marginalizados vivem sobre o domínio e a opressão violenta dos estados, fazendo-se presente enquanto próprio estado (polícia, política etc) ou pelo fomento a todas as possibilidades de atuação desse crime (corrupção, milícia, “guerra” as drogas etc). Esse estado é o mesmo que continua matando nossas crianças como medida de conter a organização popular revolucionária (messiânica). O livro de Rubens Paiva chamado “Infância Roubada — Crianças atingidas no Brasil pela Ditadura Militar no Brasil” nos contam algumas histórias de crianças e pré-adolescentes torturados, inquiridos e sequestrados pelo estado brasileiro. Outra memória de “infância roubada” se dá em 23 de julho de 1993 no centro do Rio de Janeiro, conhecido como Chacina da Candelária. Ali foram mortos por milicianos oito adolescentes, dentre eles duas crianças, que estavam dormindo aos pés da Igreja da Candelária. No ano de 2019, cinco crianças já morreram por bala perdida no Rio de Janeiro, sendo a última, uma menina de oito anos chamada Ágatha Félix que, segundo moradores, PM’s que estavam no Complexo do Alemão atiraram contra uma moto, que acabou acertando a Kombi em que a criança estava com a avó.

A teologia da criança, ou melhor, a teologia da infância roubada e assassinada é uma reflexão urgente, insurgente e potente em nossa realidade brasileira. Onde se disputam narrativas e construções simbólicas/teológicas do que vem a ser o evangelho, ela é denuncia contra conservadorismo e o fundamentalismo. Ela não é uma teologia que morre, mas que vive, brinca, estuda, se inventa, e principalmente, ressuscita em tom de rebeldia, profecia e esperança.

Assim como a menina escreva de Naamã, essa reflexão aponta para a esperança da cura, do novo, de que há Deus libertador além de Israel, mas que vem também do oriente como notícia revolucionária de um Deus que: “Agiu com a força do seu braço, dispersou os homens (adultos) de coração orgulhoso. Depôs poderosos de seus tronos, e a humildes (crianças) exaltou. Cumulou de bens a famintos e despediu ricos de mão vazias”. Essa é a resposta da teologia da criança aos assassinos: de que a infância venceu e sempre vencerá porque ela sempre vem.

Mesmo que hoje se ouve uma voz de algumas partes do Brasil, que chora e lamenta a memória viva de Àgatha e outras infâncias roubadas, para àqueles aparelhados com os interesses diabólicos dos poderosos em acabar com a nossa infância, a palavra profética de Jesus continua contundente e consoladora: “E aquele que receber uma criança como esta por causa do meu nome, recebe a mim. Caso alguém escandalize um destes pequeninos que creem em mim, melhor seria que lhe pendurassem ao pescoço uma pesada pedra e fosse precipitado nas profundezas do mar. Ai do mundo por causa dos escândalos! É necessário que haja escândalos, mas ai do homem (adulto, poderoso, presidente, governador) pelo qual o escândalo vem!”.

Bruno Rocha

Palhaço, professor e pastor. Formou-se em bacharel em Teologia (FTBSP) e atualmente cursa Teatro (IFF). Seus temas de reflexão são: arte, educação, teologia da libertação e palhaçaria.

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