A travessia da páscoa que somos

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
Published in
7 min readApr 21, 2020

Por Eduardo Campos

Foto: Andrea Piacquadio, Canva

Desesperar é não poder mais esperar. Seu conceito é simples de entender, mas complexo de sentir. Quem está na complexidade do desespero está enredado na vida e pela vida, assim como um peixe nos plexos da rede do pescador. Mas, diferentemente do humano, o peixe não se desespera, pois não sabe que pode morrer. Sem água um peixe sucumbe, mas não morre. Essa parece ser uma estranha afirmação! Pois, afinal, sabemos que peixes morrem. Sim, é isso: somos nós que sabemos que os peixes morrem. Nós, humanos, sabemos, com o nosso próprio morrer, através da nossa própria condição mortal, que todo animal morre. Eis a alegria e a dor de ser humano: saber disso.

Mas, de fato, o animal sente dor, muita dor, contudo, só o humano sente a mais terrível das dores: a dor do desespero. Essa dor é a dor de se saber para a morte, a dor de deparar-se com o próprio morrer, iminente e implacável. O desesperado não pode esperar mais nada senão a morte que não deseja, logo des-espera-se. O cristianismo chamou essa morte de “morte eterna” ou “inferno”. A dor terrível que o inferno crava em nossa carne é a dor de não vermos saída, de não vermos passagem: a dor de não poder esperar nada. Seja na vida ou no post mortem o sentido é o mesmo: não há saída.

Tanto o inferno da vida quanto o inferno da tradição religiosa são formas de desespero, pois, em ambos, não há pelo que esperar, não há possibilidade. A única diferença entre o inferno do desespero e o inferno da tradição é que, no caso do primeiro, não se quer a morte que a vida dá, e, por isso, não se é capaz de morrer; e, no segundo, deseja-se uma morte que a “morte eterna” não dá — uma morte que até seríamos capazes de querer morrer. Pois, afinal, ninguém desejaria ficar para sempre nesse lugar horrendo que extingue todas as nossas possibilidades. Dessa forma, quem não pode esperar nada, nem mesmo a morte, já está no inferno. Pois, no inferno da tradição nem mesmo a morte, como a saída derradeira da vida, pode ser esperada como salvação. O inferno, em linhas gerais, é a suspensão da vida na morte, a negação da espera: a des-esperação.

A dor do desespero é, portanto, o inferno. No canto III da Divina comédia, de Dante Alighieri, o inferno apresenta um letreiro acima do seu portal, onde se encontra escrita a seguinte ordenança: “Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!”. O inferno é o mesmo que não ter esperança. Por essa razão, quem se desespera não vai para o inferno, porque já está nele. O inferno é a dor humana mais excruciante. E existe, sim, existe, mas apenas para o desesperado. Na dor da desesperação ouvimos ressoar aquela mesma frase de Ferdinando em A tempestade de Shakespeare: “O Inferno está vazio e todos os demônios estão aqui”. Esse “aqui” é todo lugar sem saída, sem passagem, sem redenção, sem páscoa. Mas há uma saída para o inferno enquanto desespero. Vejamos.

No inferno da desesperação estamos enredados na rede de um terrível pescador, que apenas nos prepara para uma devoração cabal. Agarrados e suspensos em sua rede não respiramos mais e necessitamos de um outro elemento vital que não a água natural, porque fomos transportados para uma condição na qual a vida é impossível, irrespirável, sem saída. Mas da paixão do desespero pode surgir uma paixão maior que nos acompanha nessa transposição de um enredo de vida e morte. Kierkegaard diz que essa paixão maior é a . Ela é um salto que nos faz acessar uma saída: a possibilidade de uma nova condição de vida, mesmo que essa condição seja a que a vida, agora, nos dá: a condição de morrer, poder morrer a nossa morte. Esse poder morrer não tem nada a ver com a saída mortal do suicídio. Não. Na verdade, o suicida enquanto desesperado não pode morrer a própria morte, e, por isso, desespera-se no exercício de morrer pelas próprias mãos (Isto parece ser a mesma coisa que poder morrer a própria morte — mas apenas parece. Há uma diferença sutil.).

A fé acessa, portanto, uma passagem, não para fora, mas para dentro da vida — e funda, aprofunda, fazendo-nos entrar ainda mais na vida, na própria vida que somos e não somos, de tal maneira que agora, pela fé, podemos, enfim, morrer a nossa própria morte, sentir a nossa própria fraqueza, acolher a nossa condição propriamente humana: a finitude. A fé é esse outro elemento que surge subitamente quando nos falta o elemento fundamental do cotidiano, como a água que falta para o peixe ser peixe de forma elementar. Quando falta esse elementar na vida cotidiana entramos em desespero. Mas, na elementar “água viva”, podemos entrar como quem mergulha, sem medo, na própria vida mortal que se é. O inferno do desespero é, no fundo, a revolta contra a vida como ela é: a revolta contra a finitude humana.

Embora tomados pela faina da vida diária, podemos viver como se não soubéssemos dessa nossa condição de finitude. Imersos na água, batizados por ela, podemos sentir, ainda assim, uma sede de peixe em pleno rio doce. Quando Cristo oferece à mulher samaritana “água viva”, ele sabe que ela está na vida como se nela não estivesse. Ele lhe oferece assim um outro elemento que lhe dá acesso, sem culpa, ao próprio destino de ser samaritana e mulher. A “água viva” é a fé como esse elemento extraordinário do qual a samaritana pode beber, no qual ela pode respirar, desde o qual ela pode viver. Beber e respirar, pela fé, não fala simplesmente do ato de matar a sede e de aliviar os pulmões. Esses verbos, ou qualquer outro verbo, quando são animados pela fé, eles estão todos permeados pelo verbo esperar. Na fé, os verbos ordinários do cotidiano — como, por ex., respirar, comer, colher e amar — aprendem a esperar. Mas não significa que essa espera seja um aguardo para a hora de poder respirar, para a hora de poder comer, para a hora de poder colher, para a hora de poder amar. Não. Dizendo de outro modo, há um esperar no beber, há um esperar no respirar, há um esperar no comer, há um esperar no colher, há um esperar no amar. Em todos esses verbos há uma espera serena agindo em silêncio. Dessa forma, não esperamos para exercer o verbo; esperamos no exercício do próprio verbo. Esperar no fazer, ou durante o fazer de qualquer verbo, é um esperar animado de esperança. Esperar é escuta, oração sem palavras, contínua meditação na ação, paciente e insistente atenção ao fazer. Trata-se de uma ação orante: Ora et labora. O que opera a espera enquanto vela pelo fazer do verbo? Ela abre uma esperança no coração do verbo, mostrando que todo labor, atento e corajoso, edifica uma saída para a vida. Quem espera no Cristo, o logos da fé crística, aprende a esperar no verbo de todos os verbos.

Os verbos que transcendem saltando para o elemento da fé respiram outros ares, ganham um novo fôlego, adquirem um pulmão de esperança. A esperança significa fazer a experiência de uma grande espera, de uma espera fundamental, que não espera mais pelos elementos ordinários do cotidiano. Quer dizer, então, que não se vive mais esta vida, mas, sim, a espera de uma vida que virá após a morte? Não, não é isso. A fé não espera mais pelos elementos ordinários do cotidiano nem pelos conceitos da religião, mas são esses elementos e esses conceitos que vivem no e do esperar, na e da esperança. Todos os verbos estão permeados pelo esperar, e é por isso que, na fé, podemos respirar serenamente, comer demoradamente, colher vagarosamente, amar bem devagar. Na fé todos os verbos são ajustados sob o tempo extraordinário de uma lentidão artística, de tal maneira que quando comemos sentimos melhor o gosto, quando colhemos sentimos melhor o cheiro, quando amamos sentimos melhor a pele. Só a fé sabe ser erótica, pois depois de sentir bastante, a fé não se entedia, não se enfada, não se cansa, mas deseja, de novo, a amorável vida que se é — mais uma vez, outra vez, como se fosse a vez primeira.

A espera da fé é abundante, jorrante, e é isso que diz o termo esperança. O sufixo -ança, de esper-ança, é uma partícula que indica algo de prolífero, fecundo. Esse “abundante” fala de uma fartura que sobra, que sobeja enquanto espera. Quem a si mesmo se realiza nessa esperança jorra uma grande espera, sobejando na paciência que beija devagar a própria face cansada. Esse esperar é assim como a fonte que vive do próprio viver e do próprio jorrar, ou seja, vive, à medida que se perde, vive, à medida que morre — sem contudo perder o próprio jorrar da espera: a esperança. A esperança não morre mesmo que não haja saída ou mesmo que a saída seja não haver saída. Quem opera essa contradição é a esperança, que se alegra, tragicamente, a despeito de não poder esperar por nada mais, senão pela serena espera de poder morrer a própria morte.

Para ser fonte que jorra água, é preciso saber perder-se, esvair-se, fluindo como o rio para uma foz mortal. Perder-se é morrer. Só quem é capaz de perder a si mesmo é capaz de achar-se na morte que dá a vida. Em Kierkegaard, paradoxalmente, só pode vencer o desespero diante da morte aquele que é capaz de morrer na via crucis da própria existência. A coragem de atravessar essa via já é o caminho da própria redenção. Parafraseando Guimarães Rosa, poderíamos dizer: a redenção não está na saída nem na chegada: ela se dispõe para a gente é no meio da travessia da páscoa que somos.

Eduardo Campos

Doutor em Filosofia (UFRJ), Mestre em Filosofia (UFRJ), Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ), Licenciado em Filosofia (UFRJ). Atua como pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ). Professor do Instituto de Psicologia Fenomenologico-Existencial (IFEN).

--

--