ABRAÇOS COMPLEXOS

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readJul 9, 2019

Por Eduardo Campos

Foto: Nappy, Canva

As palavras, assim como as árvores, possuem raízes, mas com a vantagem de terem uma fixidez menor. Por essa razão, algumas desenraizam mais rapidamente; mas outras, com o tempo, podem até ganhar maior profundidade. Quanto mais sensações fertilizam sua terra, menor a possibilidade de definharem. A palavra abraço mostra isso ao lado de sua definhada palavra irmã, chamada: amplexo. Apesar de pouco usada, porque já definhada, os pernósticos preferem amplexo a abraço, embora esta signifique algo bem mais simples e não menos gostoso. Abraço tem mais cheiro e calor; e o termo amplexo é mais conceitual, autoexplicativo: faltam-lhe as sensações. Quando um amigo está triste, ninguém lhe diz: “Venha cá, deixa eu lhe dar um amplexo!”. Certamente seu amigo lhe perguntaria: “É comprimido ou gota?”.

A palavra abraço nos traz lembranças de experiências para as quais o conceito duro não encontra definição. O termo amplexo tem algo mais conceitual, intelectual, analítico, porque explicita, na própria forma do vocábulo, o sentido do abraçar, explicando todo um gesto que é feito de voltas, dobras, de plicas: complicado (Uma plica é uma dobra). Um abraçar tem a configuração das dobras, plicas de braços, cotovelos dobrados, complicados, complexos. O abraço é um plexo, é uma rede onde enredamos o outro. O amplexo é um abraço complexo, o plexo de uma rede feita de braços. Mas como?

Am-plexo vem da composição de am-, no sentido de “em torno de”, e do verbo latino -plectere, derivado da palavra latina plicare que diz “dobrar”. Então, aproveitando o sentido do verbo latino, poderíamos dizer que aquele que dá um “amplexo” está dobrado (-plectere) em torno do (am-) outro. Mas abraço diz isso de uma forma melhor e bem mais gostosa, pois quem está dando um a-braço dobra o braço pelas costas do outro, por cima ou por baixo do seu braço, sobre pescoço, ao redor da cintura, em torno das pernas, etc. Poderíamos até dizer que se dá amplexos com as pernas, quando apernamos o outro. Veja só como o verbo abraçar (ou apernar!!) diz mais que o substantivo “amplexo”, que possui apenas as dobras das meras complicações complexas do conceito. Mas também, no abraço, estamos em estado complexo, encontramo-nos física e existencialmente enrolados no outro. E, depois dessas explicações conceituais, poderíamos até começar a falar e a oferecer “amplexos”, pois a palavra ganhou agora um sentido bem mais sensual, pois as sensações fecundaram o mero conceito formal: “Bom dia, amplexos!”.

Unimos o conceito à sensação, ou melhor, pensamos o conceito a partir da sensação, o conceito como sensação, da mesma maneira que Caeiro diz sobre si mesmo: “Meus pensamentos são todos sensações”. Não apenas seus “pensamentos”, mas seu dizer de poeta que sabe falar, e que somente fala e diz a partir do amor que ama: “Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é. Mas porque a amo…”.

Há, certamente, um dizer que fala em “amplexos”, mas não abraça; e até mesmo um que abraça, mas não enreda nos braços. Esse é um dizer puramente conceitual que subjuga o sentir. Mas o que seria um “amplexo” que abraça de verdade? Aquele que pensa a partir das sensações do abraço. Há, portanto, um dizer que abraça, e à medida que se dobra em torno, se enroscando todo, envolvendo o outro nesse abraço de polvo, o gesto fica inteiramente complexo, o outro completamente enredado, cheio de dobras que apertam, de voltas e reentrâncias que avançam, podendo até acontecer no abraço aquilo que os antigos diziam que acontecia, quando alguém ia para cama com o outro: “Abraão conheceu Sara”. Buber diz que, para os antigos, conhecer é “abraçar com amor”.

O pensar que conhece dessa maneira abraça com amor complicado, complexo. Esse “amor complexo” não significa um amor difícil. Nada disso. “Amor complexo” diz: amor de cúmplices. Esta bela palavra, que pode ser motivo de preocupação, quando é o caso de alguém que está perigosamente comprometido com outro, pode também guardar o sentido leve e feliz de duas pessoas que se abraçaram, que dobraram braços e pernas ao redor do outro, comprometeram-se, tornaram-se abraçados, complexados, complicados, cúmplices. E ainda que os abraços tenham se desdobrado, ficaram os redobramentos de uma recordação: marcas de dobras cúmplices que o destino preferiu descomplicar.

Eduardo Campos. Doutor em Filosofia (UFRJ), Mestre em Filosofia (UFRJ), Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ), Licenciado em Filosofia (UFRJ). Atua como pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ). Professor do Instituto de Psicologia Fenomenologico-Existencial (IFEN).

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