O elemento central de uma família é o amor e o afeto

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readAug 23, 2017

falar em famílias é falar em múltiplos arranjos

Fazendo a ponte com o meu primeiro texto aqui, nosso ponto de partida é a frase de Hannah Arendt, grande teórica política do Século XX: “O amor é um evento que pode se tornar uma história ou um destino”. Esta frase está em um texto denominado “Amor e Casamento”, escrito em dezembro de 1950, onde a autora trabalha uma interessante questão: a de que o amor seria um evento e não um sentimento.

A palavra “evento” se origina do latim e sugere um acontecimento, uma ocorrência ou até mesmo um acaso. Assim, amar não seria propriamente um sentir, mas algo que ocorre concretamente sobre as pessoas e que as move na direção das outras.

Sendo um acontecimento, sua existência seria passageira e, portanto, sua duração seria a da manutenção do interesse recíproco ou da atração sexual. E como eternizar o amor-evento, se ele tende a desaparecer?

Transformando-o em uma instituição social denominada casamento, que até o final do século XX era a maneira central de se formar uma família reconhecida pela sociedade, baseada em princípios legais, éticos e religiosos. Para Arendt, este movimento tornou o casamento a “instituição do amor”, tornando-o uma relação onde a proteção da lei e os direitos e os deveres se sobrepunham aos afetos.

Até aí, nada de novo.

Todos os povos têm registros de modelos de casamentos, cada um deles com formas de celebração mais ou menos solene. Nova é a ideia de casamento como vínculo de amor. Embora alguns textos antigos, inclusive bíblicos, tragam narrativas de casamentos baseados em amor, a maioria deles era forjada por laços de interesse econômico, político ou de proteção. Casar com quem se ama é uma prática relativamente recente, que vem do final do século XIX. Até então, o que prevalecia era o contrato feito entre as famílias e celebrava a união de interesses em comum.

Por volta dos anos 1900, o amor passa a ser um “ativo” valorizado. Há a ideia do amor romântico, bastante ajudada pela literatura e, um pouco depois, pelo cinema. Esta centralidade do amor como razão para celebração das famílias traz uma séria mudança no padrão comportamental: se o sentimento deixava de existir, o casal se dissolvia e passava a buscar novas relações que lhes trouxesse a ideia de “felicidade no amor”.

No entanto, dissolver o casamento no Brasil era algo complexo. Nosso País regulamentou o divórcio somente a partir de 1977, sendo o penúltimo da América Latina a fazê-lo. Antes da Lei do Divórcio, existia a figura jurídica do desquite, que não habilitava os desquitados a se casarem novamente, além de trazer um grave juízo de reprovabilidade social: ser desquitado ou, mais especialmente, no caso da mulher, desquitada, não era nada fácil.

Mas como fazer para “alcançar o amor” se não havia divórcio e a Lei não permitia a constituição de uma nova família? Os interessados passaram se valer de um instituto tão antigo quanto a nossa colonização: o concubinato, que se constituía a partir da convivência entre um homem e uma mulher como se “casados fossem”. Entretanto, o concubinato sempre teve a pecha (imperfeição, falha) de “família ilegítima”, de relacionamento à margem da lei.

Mas o que fazer, se as pessoas viúvas, solteiras e desquitadas estavam optando por este modelo familiar? Em 1964 o Supremo Tribunal Federal reconheceu que pessoas que viviam juntas podiam partilhar seus bens como se casados fossem. Ainda nos anos 1940, foram concedidos direitos previdenciários para as concubinas. E assim, gradativamente, direitos foram sendo assegurados àqueles que não optavam pelo casamento como forma regular de constituição de família, embora até hoje persista a figura do concubinato para aquelas relações firmadas entre pessoas impedidas de casar pela concomitância de casamento ou por serem ligações de parentesco da pessoa desejada.

A partir deste reconhecimento do concubinato como capaz de gerar direitos, houve uma consolidação da ideia de que as pessoas, por ato de vontade, tem a liberdade de optar pelo modelo de família que melhor lhes conviesse, o que resultou na Constituição Federal de 1988 em um novo instituto jurídico para a sociedade brasileira: a união estável.

Assim, o Direito de Família caminhou ao encontro da noção de que o elemento motivador da constituição de uma família é a vontade, é o querer conviver e a valorização do amor e do afeto como elemento central. Desta forma, falar em famílias é falar em múltiplos arranjos, que vão além do casamento. O que nos move à constituição das famílias? Talvez possamos afirmar que hoje o mote central é o “evento-amor” como parte do destino de cada um de nós.

Fernanda Pimentel, de Bom Jesus do Itabapoana — RJ. Professora de Direito Civil na UFF, onde também cursou o Doutorado em Sociologia e Direito. Pesquisa e reflete sobre as relações familiares no Brasil.

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