AS MARCHAS QUE JESUS FEZ

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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5 min readJul 1, 2019

Por Priscila Gonçalves

Você já viu um diamante em estado bruto? Nada tem a ver com aquela imagem bonita dos filmes e nos comerciais de jóias. O seu formato é adquirido, mas antes mesmo de receber a atenção de quem o manuseia, o seu valor é indiscutível. Assim enxergo os Evangelhos: como um diamante em estado bruto, uma pedra sem contornos definidos, com partes pontiagudas, mas que ao ser bem lapidado o seu valor excede em muito o seu estado natural. É partindo da preciosidade dos Evangelhos que podemos pensar pelo menos três marchas que Jesus fez, e que deveríamos fazer cotidianamente.

Foto: Mabel Amber, Pixabay

A primeira marcha que Jesus fez e que poderia servir de paradigma está no capítulo 14 do Evangelho de Mateus, que narra a primeira multiplicação dos pães e peixes. Depois de receber a notícia da morte de João, o Batista, Jesus se retirou da cidade onde estava de barco, mas as multidões o seguiam por terra. Quando desembarcou, Jesus viu a multidão que caminhou quilômetros a fio para encontrá-lo, e sua recepção não poderia ter sido melhor. O texto do evangelista narra que em meios às suas andanças Jesus se compadeceu das pessoas e as curou. Isso revela que Jesus ouviu, olhou e tocou nas pessoas. A compaixão que motivou as curas se estende até a multiplicação de pães e peixes, pois, este outro milagre revela que Jesus, em certa medida, se responsabilizou pela dignidade daqueles que já havia dignificado com seu cuidado. “Dai-lhes, vós mesmos, de comer” foi a resposta dada por Jesus aos discípulos, que sugeriram que a multidão caminhante cuidasse de sua própria fome, de maneira individual. “Não precisam retirar-se” só pode ser uma ordem de alguém que entende que a fome deve ser dissipada, mas a comunhão também é alimento. Jesus era um Caminho para o alívio da fome de ser.

Uma outra marcha feita por Jesus, que poderia servir de paradigma para a Igreja contemporânea, é a caminhada até a casa de Lázaro. De forma objetiva, Jesus recebe o recado de Marta e Maria de que Lázaro estava adoecido, e somente alguns dias depois vai ao encontro da família. O texto narra que ainda a caminho, Jesus diz aos discípulos que Lázaro havia morrido e a notícia se confirmou ao serem recebidos por Marta aos prantos. A outra irmã, Maria, que antes havia ungido os pés de Jesus com bálsamo em um ato de devoção e serviço, no primeiro momento ficou sentada em casa cultivando sua dor, mas depois uniu suas lágrimas às de Jesus, que também chorou. O imperativo “Lázaro, vem para fora” ressuscitou também a fé de Maria, fortaleceu a esperança de Marta, produziu fé nos judeus que presenciaram a cena e fez o próprio Jesus professar sua gratidão ao Abba que o ouviu. O texto do Evangelho de João, no capítulo 11, apresenta esse episódio da vida de Jesus e nos revela que ele foi como qualquer pessoa que sofre: chora, se comove, caminha mesmo que em dor. Jesus nos ensinou que dias tristes são parte do caminho, mas é também no caminhar que encontramos e somos consolo.

Por fim, certamente a marcha mais dolorosa e política da vida de Jesus foi a que ele fez até o Gólgota, mais conhecido como Calvário. Marcha dolorosa pelo óbvio, e política pelo implícito: a caminhada para a morte reforça mais a Boa-Notícia do que a fuga, ou uma insurreição violenta. Acerca desse momento, o Evangelho poético de Lucas (capítulo 23:26) nos apresenta uma informação ligeira, tanto quanto suficiente sobre um tal de Simão. Quem foi obrigado a carregar a cruz do Cristo cansado foi um homem do norte da África, constrangido por um representante do Império da dominação, violência e espoliação. “Um cireneu, que vinha do campo” é sinônimo de “um negro, pobre, forasteiro, subjugado”. Essa marcha de Jesus foi antagônica à sua entrada em Jerusalém e revela um Jesus frágil, machucado, que tem sua cruz imposta à outras costas, simbolicamente tão açoitada quanto a dele. A glória da marcha do Cristo é a reafirmação contundente de sua fé em um Deus que é Pai e não Algoz.

As três marchas citadas apresentam cada uma, uma imagem complementar e fascinante de Jesus. Na primeira, um Mestre que vai em direção as pessoas, agindo com elas movido por compaixão e objetividade. Na segunda marcha, Jesus sai da cidade grande e caminha para a aldeia porque seu amigo não está bem e acaba morrendo. Essa marcha representa consolo e vida, que não depende dos holofotes das grandes metrópoles e de seus palanques. Na terceira marcha, Jesus caminha em direção ao sentido de sua vida, e este sentido não é a morte pela morte. Mas sim, é a morte como um ato de resistência de Jesus contra a possibilidade de ter ações que lembram mais o Império Romano e os poderosos do Templo, do que o Reinado de justiça e amor que pregou e encarnou.

Há algumas marchas que Jesus não fez, e certamente não faria.

Há algumas marchas “para” Jesus que ele próprio rejeitaria.

E há outras que ele fez, e tristemente não optamos por reproduzir.

Priscila Gonçalves

Teóloga por paixão e formação, Mestre em Ciências da Religião (UMESP), nascida e criada em uma favela da região metropolitana do Rio de Janeiro. Sempre motivada a enfrentar o que diminui a potência criativa da vida, transforma as leituras que faz, os textos que escreve e as reflexões que propõe em verdadeiras ferramentas de inquietação coletiva, sem esquecer de uma boa dose de esperança e utopia.

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