Pelo direito humano de estarmos distraídos!

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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5 min readSep 22, 2017

Sem a distração, deixamos de aproveitar o bom da vida

Somos vigiados em cada passo, seja por circuitos de monitoramento com câmeras, shoppings e condomínios, ou mesmo pelo Google. Soube semana passada de um mecanismo deste site de busca (eu diria site que me busca) que mapeia cada passo nosso.

(Digite, após a leitura desse texto, “Histórico de localização” no Google e se divirta. Ou não.)

Vivemos em uma sociedade vigiada muito além dos moldes da célebre distopia “1984” de George Orwell, onde o cartaz escrito “O grande irmão está vigiando você” era visto em cada esquina, de forma a criar a subjetividade do medo e da atenção em cada indivíduo. Hoje todos nos vigiam. Foucault iria à loucura se vivesse ainda.

Associado a esse estado de coisas, vemos o crescimento do discurso “coach” de “maximize seus resultados”, “os vencedores tem metas, os perdedores desculpas”, “vencedores nunca desistem, quem desiste nunca vence”.

A vida empreendedora nos acomete de um auto-monitoramento de cada passo e processo para aumentar a performance e potencializar todo instante como sendo o mais produtivo possível. Exercício, foco e atenção “on time” são as palavras chave para o sucesso pessoal, ou, the sucess.

Mas nada contribui tanto para esse quadro quanto as redes sociais. Elas nos aprisionam, seja na necessidade de estarmos atentos a tudo o que acontece, a fim de darmos nosso juízo sobre, seja na falsa de que todos os nossos momentos precisam ser compartilhados. Nos viciamos a fazer de cada instante uma storie, uma foto, fazendo da experiência ela mesma algo posterior, secundário. Quanto mais visualizações, mais felizes ficamos. Traduzindo: quanto mais somos vigiados, mais nos satisfazemos.

Como o cão que ama a coleira.

O papagaio a gaiola.

Mas o ovo da serpente dessa loucura virtual se chama Whatsapp. Ele nos impele a ter que estarmos “online” a todo tempo. Ai daquele que deixe de responder dentro de 10 minutos ou de interagir nos grupos familiares com os emoticons mil.

A tecnicização da vida, já denunciada em outros termos por Heidegger em meados do século passado, fez do mundo humano um universo técnico, no qual estamos presos e arredados. Somos androids cooptados para respondermos sempre, vermos tudo, opinarmos sobre tudo. A vida se tornou binária, lógica, programada.

Há vida fora desse cenário?

Há vida: a vida.

Li outro dia (em uma rede social…ah vá!) o seguinte: “Há 15 anos entrávamos na internet para fugir do mundo real. Agora o mundo real é um escape da internet”.

Em outras palavras, hoje fugimos da internet, nosso habitat mais natural, e não mais do mundo real.

A caverna de Platão do século 21 seria bem diferente da tradicional: “imagine homens que descobriram uma caverna e por conta própria se acorrentaram dentro dela. Eles passam o dia assistindo as sombras em seus smartphones e tablets. O filósofo é aquele que vai para fora e convida seus amigos a entrarem nela. Ali eles contemplam as ideias, as formas e os memes. Enquanto uns postam, outros pastam.”

Onde está a vida? O que é mais real? Eis a questão filosófica por excelência, e como platônico que sou, respondo: o real está lá fora, offline.

A vida real nos confronta e nos coloca sempre diante de nós mesmos. Como quando falta luz:

mas era dia,

o sol invadiu a sala,

fez da TV um espelho,

refletindo o que a gente esquecia…

No mundo real há afetos, abraços, choros, arrepios, calafrios, dúvidas, fracassos, hérnias de disco, sono, brisas, odores, relógios. Sobre este último, o mundo digital nos permite parar o tempo.

Aliás, lembra daquela propaganda da Ortobom?

“Compre um colchão, afinal você passa 1/3 da sua vida nele”?

As propagandas de celular em breve serão:

“Compre um iphone, afinal você passa ½ da sua vida nele”.

(Hashtag fica a dica Apple.)

Tenho me permitido, como processo terapêutico, fugir dessa falsa alienação chamada redes (anti)sociais. Digo falsa pois ela nos aliena da vida “real”, mas nos coloca diante de questões e fatos ininterruptos, constantes e impossíveis de acompanhar. As redes sociais nos colocam diante da vida e seu fluxo constante e avassalador. Tudo muda num clique ou postagem.

O rio de Heráclito seria hoje uma tromba d’água…

Como parte dessa fuga me permito uma cota de visualizações a cada “entrada” nas redes. Vejo no máximo 20 postagens e saio. Tento inclusive ler e me aprofundar em cada uma delas. Não somos capazes de dar conta de tanta informação que as redes sociais nos impõem, e suspeito que boa parte dessa loucura social que estamos vivendo (chamada “Black Mirror” da vida real) no âmbito político mundial tem a ver com a avalanche de informações que recebemos na internet. É tanta notícia, que já não mais nos importa se é fake ou não. Aliás, a cada uma “real” que nos chega, esperamos a próxima para lhe desmentir. Chamaram isso de era da “pós-verdade”; eu chamo de era da “nós-verdade”, onde nós é que temos a medida do que é verdade, e por isso o caos social se impõe entre um boa noite e outro do Bonner.

Se sobrevivermos a essa hecatombe social-virtual haverá um tempo em que nos daremos conta que precisamos de grandes doses de distração real em nossa rotina. Precisamos de alienação que realmente aliene, pois no fundo, a verdade (a dos fatos e não a metafísica ou intelectual) é dolorosa, adoecedora e caótica. Se eu soubesse de cada processo interno do meu corpo, do câncer que chega, dos riscos que há em cada alimento, eu enlouqueceria. Da mesma forma as informações sobre o mundo nos adoecem. A corrupção é maior hoje ou temos mais acesso a ela? O que as redes sociais podem revelar sobre o devir do mundo? Se elas existissem no passado saberíamos quem matou Odete Roitman, se Elvis realmente morreu e se Capitu traiu ou não Bentinho. Haveria cristianismo? Guerras mundiais? Ditadura? História?

Pelo direito humano de estarmos distraídos!

De comermos comida sem sabermos que tem glúten, de ouvirmos Chico sem suspeitarmos que pode estar sendo machista, de conversamos com o vizinho no elevador sem sabermos que ele defende o Bolsonaro.

A distração nos salvará.

Como disse Clarice, precisamos aprender que não estando distraídos, o telefone não toca, e a carta não chega. Eu acrescentaria: sem a distração, deixamos de aproveitar o bom da vida, pois só nos damos conta do que é bom depois que passa. A felicidade nos visita quando estamos distraídos, vivendo.

Não há felicidade consciente, programada, vigiada, pois como diz a célebre poesia do pagode brasileiro: “eu era feliz, sem saber…”.

André Decotelli é filósofo, doutorando em filosofia pela PUC-RIO.

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