BOECHAT E O BOM DEUS

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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3 min readFeb 16, 2019

Por Eduardo Campos

Ilustração: Debize Design, Behance

A mídia social nos coloca em meios nos quais, muitas vezes, dispensaríamos estar. Mas esse é o preço que pagamos uma vez que aceitamos baixar um aplicativo. Num desses meios digitais recebi de uma pessoa a notícia que justificaria cabalmente a morte do jornalista Ricardo Boechat. Ei-la: “Boechat havia zombado de Deus”. A fórmula para o tal descalabro seria: Boechat zomba de Deus, logo Deus o mata. Diante da asneira de tal vingança pessoal projetada em Deus, só me coube rir com escárnio (seguindo a santa orientação de Lutero!) e dizer em bom som: “Suplico a esse ‘Deus’ que, desde já, me junte a Boechat, pois não posso crer no Deus que desenha com sangue odiento e vingativo uma deprimente lógica do inferno. Espero, então, morrer nas próximas horas, pois não posso crer em alguém que gospe sangue depois de se fartar à mesa da vingança” (Ai, continuei vivo!).

Essa é uma lógica tão perversa quanto à lógica que perpassa um ato de perversão qualquer. Na verdade, desconfio até mesmo que “perversão” seja um termo adequado para tal coisa. Não, não cabe atribuir a isso o desvio de caráter que constitui a perversão, pois o perverso costuma ser ao menos mais inteligente, a despeito do seu decadente caráter. É muito mais que uma mera perversão, trata-se de um espírito que ama a vingança: ama não amar.

O vingativo tem sede de fechar um balanço feito de débitos e créditos morais. De que maneira ele fecha o balanço dessa contabilidade vingativa? Ex.: alguém fez algo indevido, i.e., contraiu um débito. O vingativo, como um banqueiro, apressa-se para acusar essa dívida. Esta deve ser paga de alguma maneira. Alternativas: o devedor paga a dívida com sofrimento ou com morte. Muitas vezes, o vingativo prefere a primeira opção de pagamento, pois o sofrer alheio lhe dá a delícia íntima de um pagamento mais contundente que faz perdurar por mais tempo a sua satisfação sádica. A tortura é, em linhas gerais, o exercício desse agrado pessoal. “A morte, como forma de pagamento, é uma delícia curta demais”, ele não diz, mas sente. No fundo, no fundo, aquele que se extasia com essa satisfação íntima, promovida mediante a vingança de Deus, sofre com o medo de ser, a qualquer momento, ele mesmo, alvo da fúria divina. Aqui, então, dois afetos se avizinham: a vingança do ódio nasce do medo escondido no ódio.

Contra esse mal, eis o antídoto que consta em duas belas fórmulas bíblicas: “…o perfeito amor lança fora o medo” e “o amor cobre uma multidão de pecados”. Mas, não se engane! Nesse caso, a fórmula não está sendo usada para salvaguardar as conclusões teológicas de Boechat. De forma alguma. As belas fórmulas bíblicas servem para todos os vingadores do “evangelho”!

Eduardo Campos. Doutor em Filosofia (UFRJ), Mestre em Filosofia (UFRJ), Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ), Licenciado em Filosofia (UFRJ). Atua como pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ). Professor do Instituto de Psicologia Fenomenologico-Existencial (IFEN).

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