CAFÉ DE AMANHÃ

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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3 min readMar 27, 2020

Por Eduardo Campos

Eu antes precisava de tempero para tudo,

e era assim que eu pulava por cima da coisa

e sentia o gosto do tempero.

(Clarice Lispector)

Nunca duvidemos de que a fé é fel: “Pai, se queres, afasta de mim este cálice. Contudo, que seja feita a tua vontade, e não a minha”. O desconcertante da fé é que ela só começa nesse “Contudo” — quando não pedimos mais o afastamento da dor e uma sublime “vontade” ultrapassa o nosso querer. Em tempos nos quais os quereres são cada vez mais alimentados e potencializados, não apenas pelos poderes da religião, mas também pelos poderes da ciência, uma palavra como a nossa soa démodé, porque capitulante, estoica, para não dizer sadomasoquista, pois, imediatamente, quem não pede o afastamento da dor deve gostar de sofrer. Mas a dor não é a causa, mas a ocasião para a fé.

Há um desconcertante paradoxo no desejo da fé: ela, no fundo, quer o fel, pois o fel a desafia, exigindo que ela aprenda a destilar de si o sentido de um sabor singular, todo próprio. A fé então é aquela paixão que nos afeta o paladar quando nada mais nos oferece sabor, ou quando tudo possui apenas o sabor acre que repele o fel. O querer tocado pela fé não se serve mais dos sabores disponíveis, mas a tudo dá o seu sabor na provação da própria fé. A fé é o milagre de sorver um amargor sem amargura. Eis a estranha doçura que a oração pode de repente encontrar no fel! Mas a oração pedinte, que insiste no mel, está à mercê de um sabor que nunca terá, ainda que consiga provar de todos os sabores do mundo. Se a religião é o ópio que adormece a língua, a fé é o antídoto que a excita, que a faz arder, que a desperta erótica. É o Cristo-Dioniso contra o Cristo-Morfeu.

“Pai, se queres, afasta de mim este cálice”. São palavras que antecedem a câmara da morte, palavras de desespero, pois muito pior que o estado da morte é estar na antessala do morrer, a caminho do calvário. Essa prece crística é, portanto, o desespero de uma antessala, o desespero de não poder morrer. E, por isso, o primeiro trago do fel que a fé precisa aprender a sorver é o do desespero diante da via-crúcis da morte. O desespero é suar sangue em um cálice que haverá de ser bebido, sem poder, pelo que sangra.

“Contudo, que seja feita a tua vontade, e não a minha”. Esse “Contudo”, i.e., apesar da minha vontade de mel: que tudo seja feito ao sabor do fel! “A fé, diz Kierkegaard, é a mais sublime das paixões”. A fé é, de todos os sabores, o mais sublime, e a condição para saber provar o sabor dos sabores. É única paixão que sabe provar um “vinho tinto de sangue”.

Dizem que o sabor do café só pode ser sentido de verdade quando ele não está misturado com açúcar. Mas diante de tal possibilidade há gente que torce o nariz, dizendo que “…de amargo, já basta a vida!”. Orações com açúcar sentem o gosto da fé? Bom dia!

Eduardo Campos

Doutor em Filosofia (UFRJ), Mestre em Filosofia (UFRJ), Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ), Licenciado em Filosofia (UFRJ). Atua como pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ). Professor do Instituto de Psicologia Fenomenologico-Existencial (IFEN).

www.institutomosaico.com.br

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