Complexidades

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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6 min readAug 9, 2017

Entre a alienação e a desorientação existe um meio termo que se faz necessário, que é uma reflexão mais crítica e mais atenta do mundo em que vivemos

Fotografia: David Veiga, Cia Ballet de Niterói, Rio de Janeiro, Brasil

Se quisermos mudar de atitude, temos que mudar a maneira de pensar. É preciso evitar o círculo vicioso que é comum nessas circunstâncias. Você já deve ter percebido isso. Como não sabemos o que é realmente importante, tudo parece importante. Como tudo parece importante, achamos que temos de fazer tudo. Infelizmente, outras pessoas nos veem fazendo tudo e passam a esperar que façamos tudo. Fazer tudo nos mantém tão ocupados que não temos tempo de pensar sobre o que é realmente importante.

As coisas, para acontecerem, demoram. Isso envolve um processo. Essa é a base do pensamento complexo de Edgar Morin. Para ele: “o conhecimento das partes depende do conhecimento do todo e o conhecimento do todo depende do conhecimento das partes.” Se você se sente impotente diante dessa realidade, isso é uma prova que é realmente uma pessoa normal. O mundo está envolvido por uma complexidade maior e lidar com a diversidade de opções tornou-se o grande drama humano e a causa de muito estresse. Não resta a menor dúvida que a quantidade exagerada de decisões que temos que tomar diariamente causa ansiedade. As muitas pesquisas que são feitas nessa área comprovam isso. Com tanta informação para processar, acabamos por não identificar o que realmente importa e o que merece nossa maior atenção.

Como isso se deu ao longo do tempo? Tudo começou com a Modernidade ocidental, ainda por volta do século XVII, quando as teorias apontavam para a valorização do sujeito autônomo, da lei do mercado e na confiança no progresso pela ciência. A Modernidade construiu concepções que deram lugar ao individualismo, ao capitalismo e ao cientificismo. Houve um deslocamento da maneira de pensar que levava em consideração a tradição e a fé para dar lugar à ideia de um futuro promissor de emancipação da humanidade, conforme sugeriu o Iluminismo, mas que nunca aconteceu. O ideal de bem-estar e de felicidade universal teve que conviver com a dura realidade da vida urbana, da desigualdade social, da poluição e da violência.

Após a Segunda Guerra Mundial, já no século XX, essa confiança no futuro caiu por terra. O pós-guerra deu lugar a uma forma de pensar individualista que culminou na ideologia do “é proibido proibir”. O que está por trás disso é a afirmação de uma forma hedonista de ser sem ilusões. O que vale é o prazer a qualquer custo e o agora é o que há. Tudo o que pode apontar para um futuro foi substituído pelo instante vivido numa espécie de culto ao presente.

O fim das utopias e o ocaso das religiões foram a tônica da revolução sexual da década de 1970. Era o auge do que ficou conhecido como pós-modernidade, fase essa que vem sendo substituída pelo que Lipovetsky chama de hipermodernidade. Ele diz: “No momento em que triunfam a tecnologia genética e a globalização liberal, o rótulo pós-moderno já ganhou rugas. Aliás, tínhamos uma Modernidade limitada e hoje temos uma modernidade consumada, uma segunda modernidade a que chamo hiper.”

Aquilo que marcou a Modernidade — o individualismo, o cientificismo e o capitalismo — chegou ao auge. A globalização e o fim das grandes ideologias produziram um tipo de individualismo firmado no gozo ao extremo. Com isso, a identidade passou a ser definida pela moda e o consumo de luxo, não mais por uma concepção política ou religiosa. O cientificismo proposto pelo Iluminismo e o Positivismo dá lugar a um hipercientificismo. Uma mentalidade que acredita que se é capaz de controlar o nascimento, o envelhecimento, a alimentação, a beleza e até a morte. A sociedade de consumo controlada pelos meios de produção passou a ser também hiper, na qual a publicidade e os meios de comunicação ocuparam o lugar da religião e do Estado como guias e instituições de coação. Nesse mundo novo, estrelas de cinema e modelos tornam-se ícones de sucesso profissional e grifes despontam como os principais objetos de desejo. É o surgimento da sociedade do excesso.

A pós-modernidade tem sido marcada por uma sociedade pós-moralista, aberta para a diferença. O que se viu desde seu início foi o surgimento de uma fase de exageros. “Exagerado… Eu sou mesmo exagerado”, dizia Cazuza. Boudrillard já havia falado do simulacro, em que a humanidade colocou o virtual acima do real. O espetáculo do replay do gol é mais emocionante que o calor humano do estádio de futebol. Diante da sensação de insegurança que isso acarreta, desenvolve-se a noção de autocontrole como consequência de uma tensão provocada pelo medo do desemprego, do risco de doenças, do aumento do colesterol, do estresse, de ataques terroristas. O futuro incerto e o medo provocam novas patologias como o consumismo, a anorexia, o bulling, o pânico, o gosto pelos reality shows.

A humanidade está desorientada. Aquele tipo de orientação vertical que colocava ordem nas relações apontava para o grande desafio de cumprir uma carreira até chegar ao topo da pirâmide familiar ou profissional. Neste tempo hipermoderno, a grande questão não é encontrar o caminho a seguir, mas como lidar com a ausência de um caminho preestabelecido e como viver num mundo fragmentado. Para isso, aquilo que conhecemos como hipermídia — que é conjunto de meios que permitem acesso à informação — assume o papel de guia e conselheiro. O termo, que é da área de Tecnologia da Informação, se ajusta bem na compreensão do modo como utilizamos redes sociais, sites de busca e até o modo como o conhecimento chega até nós. Essa influência é construtora de nossa identidade, que sofre ainda interferência a partir da moda, do consumo e da indústria cultural em áreas como a cosmética. Some-se a isso o papel da ideologia e o poder do capitalismo sobre a formação do caráter. Enfim, o que mais motiva as pessoas a consumirem artigos de luxo, por exemplo, tem muito a ver com a busca de autorrealização, de autoestima e de afirmação de identidade. Não é mais uma questão de status ou de aceitação social. A etiqueta traz consigo elementos que as pessoas supostamente têm em sua essência, como uma questão de autoafirmação.

O corpo assume papel importante na formação da identidade. A sociedade e os grupos se organizam a partir da aparência física, do vestuário, do uso de tatuagens e piercings. Para resgatar a sensação de conforto e bem-estar, basta recorrer a um tatuador ou mesmo a um cirurgião plástico como forma de superar a depressão ou uma crise de identidade. Tudo isso marcado com a preocupação com a sustentabilidade, preservação do meio ambiente e ecologia industrial. Além disso, voltam elementos do passado como que num resgate da memória, a nostalgia que se soma à moda e à vaidade, o passado revisitado.

O que à primeira vista parece tão simples é permeado por uma complexidade que lhe é inerente. Só dá para se chegar ao simples a partir do complexo. Caso contrário, não passará de atitude simplória. Pensar o simples sem perceber a complexidade que o cerca é alienação, mas pensar a complexidade sem procurar as formas mais simples de explicar a realidade é como o cachorro que corre atrás do próprio rabo. Nunca se chega a lugar algum. Entre a alienação e a desorientação existe um meio termo que se faz necessário, que é uma reflexão mais crítica e mais atenta do mundo em que vivemos.

Irenio Silveira Chaves. Mestre em Filosofia e Doutor em Teologia. Pastor da Igreja Batista da Orla Oceânica, professor e escritor.

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