CORPO MÍSTICO

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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5 min readSep 21, 2018

Por Eduardo Campos

Para Maria Eduarda

Tenho uma filha de 10 anos com uma “má formação” óssea em todo o membro inferior esquerdo. O nome dessa “má formação” é hemimelia fibular — um encurtamento importante de todo membro inferior esquerdo, além da ausência de fíbula e de alguns ossos do pé esquerdo. Como parte do tratamento, ela fez uso de um fixador externo chamado Ilizarov, que visava alongar o membro acometido. Trata-se de uma espécie de “gaiola de ferro” que “aprisiona” a perna e o pé.

Apesar da condição de “aprisionado” — estar privado da liberdade — configurar uma situação terrível, quando se está preso nas grades do Ilizarov, a palavra “aprisionar” é mero eufemismo. Não se fica preso apenas às suas grades, mas nas suas grades. Em se tratando de Ilizarov estar “aprisionado” significa: estar preso por grades que cercam, penetram, compenetram o corpo por dentro e por fora, pois, o metal que “aprisiona”, retém a liberdade do membro com grades que não apenas cercam, mas transfixam o membro, como se as paredes erguidas da prisão rasgassem continuamente a carne do prisioneiro. É uma cruz posta sob anestesia apenas para a dor primeira, mas que volta a doer como uma cruz que trespassa o corpo durante meses ou anos de sofrimentos diuturnos.

Quando o seu primeiro ortopedista, com toda sua convicção médica, deu o diagnóstico de um tipo de “má formação” óssea, desconfiei de tal diagnóstico; e, à medida que a mocinha crescia, confirmei a minha suspeita irônica: o ortopedista estava realmente equivocado. Depois de algum tempo, confesso que quase me deixei seduzir pela perspectiva médica. Mas, felizmente, a tentação logo passou. A minha desconfiança não era teimosia de pai querendo esconder de si mesmo a dura realidade da vida, fantasiando em torno das certezas insofismáveis dos fatos científicos. Não, não era isso. Apenas desconfiava desse conceito de “mau” da “má formação” defendido pelo ponto de vista da ortopedia.

Sempre que ouvíamos a expressão “má formação”, parecia que a vida nos toldava com um manto malévolo, sombrio, terrível. A “má formação” dizia que minha filha estava aquém da boa forma. Era um “mau”, portanto, estar aquém; e seria bom, portanto, estar além. O “portanto” eram as razões pressupostas pela mania de retidão, de correção do ortopedista — um sacristão de jaleco. Mas o “mau” dessa “má formação” soava em mim como algo sagrado, acometendo-me estranhamente em temor e tremor. O “mau” ganhava pouco a pouco o sentido de um mistério que irrompe gratuitamente como acontecer inocente, sem porquê nem para que — um acontecer que é de graça até quando é desgraça. O que a ortopedia dizia ser “mau” era apenas a inocência da vida que se abria como pura dádiva, como puro acontecimento: nem bem nem mal. O sagrado é essa inocência. Como diz Guimarães Rosa: “Todo abismo é navegável a barquinhos de papel”. Para esse barquinho inocente só há um destino: navegar sobre o abismo. Se vai afundar ou não, não é da sua conta! A “desgraça” de inocentemente afundar também é graça para aquele que tem fé; e qualquer sanha calvinista, que queira colocar um leme metafísico para controlar o destino do navegar, certamente seguirá em paz para o céu, mas morrerá virgem para esta vida.

O “mau” da “má formação” começou a ganhar outro colorido. Estar “aquém” da boa formação ganhou o sentido de uma incompletude, de um inacabamento que é próprio de toda a existência humana. A incompletude do osso nos ensinava a ver a incompletude da nossa própria vida que se mostrava como uma história a ser escrita a partir da dor daquele acontecimento ósseo. O negativo dessa “má formação” revelou-se com um certo não saber acerca do porvir de uma formação que extrapolava o mero sentido ósseo e atingia um sentido vital. Não se restringia, dessa forma, ao fato já formado e acabado do presente malformado, mas a um futuro em contínua formação, concepção, sempre nascendo, vindo à luz, formando-se. O “mau” dessa “má formação” mostrava a cada vez uma nova formação de sentido, aberta, inconclusa, em direção ao desconhecido, ao mistério que contorna qualquer processo de formação. O “mau” da “má formação” passou a assumir o bom sentido do mistério imponderável e inocente da vida. Quê boa formação! — quando a deformação da ortopedia exprime, sem querer, a perfeição de um corpo místico!

Numa certa noite, esse mistério tornou-se ainda mais aparente, quer dizer, ainda mais desconhecido, ainda mais misterioso. A palavra da ortopedia se desfez dando a vez a uma palavra mais penetrante que discernia ossos, juntas e medulas, os “pensamentos e intenções do coração”. Isso fica claro quando, vez ou outra, você toma rasteiras na consciência, quando os olhos traem enganando com diagnósticos vitais e perfeitos. É o exato momento em que os olhos deixam de ver para ver. A ciência poderia até constatar tal engodo como “ilusão de ótica”. Contudo, protesto dizendo: “é alusão ao mistério”. Esta “alusão” faz ver o que sob a luz da ciência, com seu ímpeto de querer clarear, apenas deixa encegueirado.

A “alusão” aconteceu numa certa noite. A mocinha estava no quintal, andando com as suas muletas. Eu, dentro de casa, olhei para fora e vi, de repente, uma criança cruzando de patinete a frente da porta. Voltei os olhos para minha mulher e lhe perguntei assombrado: “Quem está andando no quintal de patinete?”. E ela candidamente me respondeu: “Edu, é a tua filha!”. Fui ao quintal e parei bestificado diante da cena da mocinha que corria através de uma marcha tipo mergulho, saltando de muletas em alta velocidade. Muletas que deixavam de ser mero auxílio para a marcha com Ilizarov e se tornavam brinquedo para correr. Em meio à brincadeira que ainda acontecia, ouvi de minha mulher o perfeito ditado popular: “Se a vida lhe der um limão, faça do limão uma limonada”. Ao ouvir a verdade do adágio, pensei em silêncio: “Se a vida lhe der muletas, faça das muletas um patinete”.

Eduardo Campos. Doutor em Filosofia (UFRJ), Mestre em Filosofia (UFRJ), Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ), Licenciado em Filosofia (UFRJ). Atua como pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ). Professor do Instituto de Psicologia Fenomenologico-Existencial (IFEN).

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