COTIDIANOS E A COR DO INVISÍVEL

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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5 min readFeb 27, 2021

Por Valdemar Figueredo

Foto: Divulgação

Vivendo recluso em plena pandemia de covid-19, resolvi ler todos os livros de Mario Quintana ao alcance da mão. Minha expectativa era deliciar-me com um texto ameno, simples, em que a prosa poética acontece em textos curtos. Mas à medida que me distanciava das margens e nadava para as águas profundas, senti falta de acenos situados em terra firme. Parecia que o poeta viveu indiferente à conturbada segunda metade do século XX. Tantos escritores repercutiram nos seus textos a contradição dos avanços técnicos-científicos-econômicos e a decadência civilizatória-humanitária-política. Não estou aqui incorrendo na confissão de que minhas expectativas foram frustradas uma vez que Quintana não bancou ao historiador, filósofo, sociológico ou qualquer outro tipo de analista especializado. Eu senti falta do poeta falando de dores e esperanças num mundo ameaçado pela corrida atômica e num Brasil em que a democracia foi interrompida. Como ficar alheio a eventos tão importantes?

Ficou parecendo que o cotidiano do qual o poeta se ocupava era restrito ao âmbito individual. Como a privilegiar o sujeito em detrimento às estruturas sociais, econômicas e políticas. Poesia do cotidiano intimista baseada na memória afetiva.

Em texto anterior em que descrevi o meu encantamento com a descoberta da prosa poética de Quintana, cheguei a usar o termo “poesia atemporal”. Vejam vocês, como se isso pudesse existir. Aquele banquinho vazio na praça da cidadezinha do interior tem história e geografia. Sim, a memória o ressignifica e o coloca como signo imaterial. Contudo, o banco tem lugar no tempo, por mais que queiramos desincorporá-lo.

Depois que ultrapassei, sei lá, o sétimo ou oitavo livro do Quintana, ganhei coragem para conversar com o autor. Não como inquisidor, mas como um interlocutor interessado e respeitoso.

  • Vem cá, mesmo as poesias intimistas merecem o mínimo de contexto. Por que ignorou a situação do país e do mundo enquanto escrevia?

Perceba que a minha demanda tem a ver com a situação na qual estamos imersos. A maior crise sanitária da história do Brasil, milhares de mortos, índices alarmantes de desemprego, desindustrialização, aparente descontrole da violência (em casa, no campo e na cidade), polarizações raivosas… Fiquei imaginando Quintana escrevendo suas crônicas no Brasil no ano de 2021. Nessa crise humanitária é possível privilegiar o cotidiano do indivíduo e calar sobre o contexto no qual ele/ela se insere?

Confesso, convivendo tão de perto com a poesia de Quintana fui ficando impaciente. Meu desconforto não teve a ver com os temas que ele desenvolveu. Muito pelo contrário, o seguir com gosto nas suas andanças prosaicas. Meu descontentamento consistiu nos temas que ele deliberadamente escolheu silenciar. Como pôde não dizer nada sobre isso? Como pôde dizer tão pouco sobre aquilo? Eu não estou exigindo do poeta uma posição política partidária no Brasil ou a declaração de preferência de lado na Guerra Fria. Apenas pedindo um pouco mais de alma num mundo tão desumanizado. Que o canto poético pudesse expressar minimante o sofrer e as alegrias de um povo, não apenas de indivíduos ensimesmados.

Compartilho esses devaneios não na condição de crítico literário. São apenas reações de um leitor num primeiro encontro com o autor. A minha experiência com a poesia de Quintana tornou-se mais madura quando me deparei com um poema que ele concebeu depois dos seus oitenta anos. Um tipo de interpretação da sua própria obra. A atitude do autor frente ao seu tempo ficou mais clara para mim. Digo isso não com a arrogância de um crítico prestes a julgar as opções do poeta. Meu empenho é mais modesto, bem mais modesto. Foi bom “ouvir” do próprio Quintana o reconhecimento do seu estilo afastado da realidade histórica. Tal silêncio sobre o cotidiano histórico-cultural-social-político foi intencional e não inconsciente. Logo, minhas inferências e percepções não estavam de todas erradas.

Em seu poema intitulado “Dedicatória”, Quintana, em um dos seus últimos livros, descreve a sua poesia como palavras cotidianas como o pão de cada dia. O leitor do jornal diário haveria de descobrir que a única novidade com a qual se depararia naquela edição seria a poesia. Na crônica policial-social-política, o leitor constataria mais do mesmo. Quintana distingue o cotidiano de João e Maria, para quem escrevia, do cotidiano policial-social-político, sobre o que preferia calar.

Quem foi que disse que eu escrevo para as elites?
Quem foi que disse que eu escrevo para o bas-fond?
Eu escrevo para a Maria de Todo o Dia.
Eu escrevo para o João Cara de Pão.
Para você, que está com este jornal na mão…
E de súbito descobre que a única novidade é a poesia,
O resto não passa de crônica policial-social-política.
E os jornais sempre proclamam que “a situação é crítica”!
Mas eu escrevo é para o João e a Maria,
Que quase sempre estão em situação crítica!
E por isso as minhas palavras são cotidianas como o
pão nosso de cada dia
E a minha poesia é natural e simples como a água bebida
na concha da mão.
[1]

A escolha do escritor é consciente e, como leitor, não assumo o papel de sensor ou crítico literário. Na verdade, fiquei aliviado ao saber que foi uma opção e não um lapso do autor. Quintana confirmou as minhas impressões quando definiu a sua poesia como expressão do cotidiano íntimo e apartada do cotidiano social. Ele pouco se refere às estruturas, lida com questões que têm a ver com as subjetividades íntimas do sujeito. Contudo, o fato de sentir falta da dimensão comunitária-política-social-humanitária fala ao meu respeito. Não consigo conceber uma experiência mística (seja pela via da arte ou da religião) que não transborde na convivência coletiva. Em termos espirituais, não faria sentido para mim a experiência com Jesus glorificado separada da experiência com Jesus encarnado.

Continuo querendo mais da poesia de Quintana. As minhas conclusões sobre o silêncio dele não desmerecem nem desqualificam o Quintanares. Minhas descobertas sobre a natureza da poesia de Quintana levaram-me a uma transição entre o fogo da paixão e a serenidade do amor. Enquanto a paixão queima abanada pelas idealizações, o amor se materializa no cotidiano, apesar de…

Sem escapismos, justificativas ou teorizações, Quintana se autodefine:

Não sou mais que um poeta lírico,

Nada sei do vasto mundo…[2]

[1] QUINTNA, Mario. A cor do invisível. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. p. 36.

[2] Ibid, p. 93.

Valdemar Figueredo

Editor Instituto Mosaico, professor universitário e pastor deslocado. Leciona nas áreas de ética e política. Na periferia atento à espiritualidade prosaica.

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