Um sistema que reproduz desigualdades

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
Published in
3 min readAug 24, 2017

Sobre esta geração que não tem nem estudo, nem trabalho, nem esperança

Um tema que é minha “obsessão” de estudo nos últimos tempos é a desigualdade de renda. Tenho lido bastante e tentado entender esse fenômeno, bem como as possíveis linhas de ação para combatê-lo.

Invariavelmente, sou lembrado a respeito em quaisquer ambientes onde estou, uma vez que no Rio de Janeiro a questão da desigualdade é visível a cada esquina. No meu bairro, onde fui criado e vivo, não é diferente.

Há pouco fui a um mercado que nas “priscas eras da minha tenra infância” se chamava Casas da Banha. De lá para cá mudou umas três vezes de nome. Hoje, reparei mais uma vez num homem, que desde a época das Casas da Banha, fica à disposição para levar as compras no carrinho para as pessoas que moram próximas do mercado e não querem carregar as bolsas.

O sujeito está lá, fazendo a mesma coisa, desde que éramos adolescentes. Ele deve ter a minha idade. Fico pensando nas possibilidades e oportunidades que aquele rapaz teve para estudar e aspirar minimamente a uma ascensão ou mobilidade social.

O que sei é que eu tive muitas oportunidades, ainda que na minha casa sempre vivêssemos com restrição orçamentária com uma mãe professora e que sozinha tinha que dar conta de três crianças.

Minha mãe foi uma mulher de muito valor.

Estudei em escola estadual durante todo o meu primeiro grau. Estudei no segundo grau com bolsa de estudo numa das escolas particulares mais baratas do meu bairro. Meu tio avô ajudou a pagar o curso de inglês que cursei.

Com esses insumos e os valores que recebi de uma mãe professora e, portanto, um ambiente familiar que me ajudou a tomar boas decisões eu consegui passar para a UFRJ. Ou seja, tive aparentemente pouco, mas o suficiente para passar para uma Universidade pública.

Minha mãe (a mulher de muito valor) morreu no meu primeiro ano de universidade. Tive que ir para o mundo e trabalhar. Essa conjunção trabalho + estudo, num curso difícil como Economia, foi muitíssimo dura. Consegui deslanchar quando recebi uma bolsa de iniciação científica no meio do curso.

Desde então, consegui terminar meu curso de graduação, mestrado e doutorado em Universidades públicas e excepcionais como a UFRJ e Unicamp. Sou MUITO grato por ter tido essa oportunidade.

Jamais poderia pagar por um curso como o que fiz.

Quero, com isso, lembrar do rapaz do supermercado que vejo há uns 30 anos sem que, aparentemente, tenha tido qualquer possibilidade de ascensão social. À primeira vista, podem achar que ele não teve méritos. Se acomodou. Ou qualquer coisa do tipo. Pois eu penso que ele é vítima desse sistema que reproduz a desigualdade, uma vez que são amplamente conhecidos os fatores associados à herança e ao ambiente familiar no êxito dos estudos. Fico a imaginar se ele tem filhos como eu. Minhas meninas estudam numa escola excelente e, por inércia, caminham para pertencer à elite do futuro do país. E a família desse rapaz? Tem os mesmos meios de lograr êxito? A pergunta é obviamente retórica.

Termino lembrando dos relatos que temos recebido dos alunos beneficiados pelos programas de ação afirmativa e que ingressaram na UFRJ. A maioria tem sofrido bastante, justamente pelo efeito “herança” de falta de base histórica nos estudos. Eis um problema concreto com o qual todas as universidades públicas terão que lidar.

O post aqui não tem um objetivo específico, apenas para alertar que numa sociedade tão desigual como a nossa, não podemos nem devemos cair nas interpretações reducionistas sobre alguns temas-chaves que devem ser pautados como prioritários em seu enfrentamento. Caso contrário não teremos apenas uma geração “Nem-Nem”. Mas uma geração que não tem nem estudo, nem trabalho, nem esperança.

João Felippe Cury Marinho Mathias. Economista (UFRJ), mestre em economia (UNICAMP) e doutor em Economia (UFRJ). É professor associado do Instituto de Economia da UFRJ. Possui pesquisas e interesse em Sustentabilidade, Desenvolvimento Econômico, Contas Nacionais e Distribuição e Desigualdade de Renda.

--

--