DESPEJARAM DEUS

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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2 min readMay 29, 2018

Por Marcelo Santos

Foto: Joana Brasileiro, Jornalistas Livres

43 famílias da Ocupação Marisa Letícia no centro de São Paulo foram despejadas

Enquanto as manchetes miravam apenas nos caminhões atravancando o país pelas estradas, despejaram Deus.

Despejaram o Senhor. O colocaram no olho da rua. Um Deus-mãe e seus filhos pequenos.

Deus morava na ocupação. Tem gente que chama de invasão. Tem gente que diz que é crime. Mas é só um lugar que pertence a outrem e que esse mesmo outrem abandonou. Prédio vazio, que uma vez vago, virou refúgio para outros que não tinham mais opções na vida. Nenhuma cama à espera. Nenhuma sala com tevê. Nenhuma cozinha com louça entulhada para se lavar quando a preguiça deixar. Gente que, como outrem, fez de uma estrebaria no Oriente sua própria maternidade.

Mas numa das manhãs mais frias do ano, como a de ontem (24/05), despejaram Deus sob o silêncio da mídia. Tiraram tudo de dentro da ocupação na Vitorino Camilo, Barra Funda. Tiraram os brinquedos da Isabel e a exemplar da bíblia da Ketia. Tiraram o fogão da Maria. Tiraram as roupas de procurar trabalho do Mones. Amontoaram como se fosse apenas um monte de coisas.

Dias antes, numa escuridão sem fim, eu vi Deus ali. Ele clareava os pensamentos de gente assustada. Acalmava e dava esperança à gente ameaçada. Consolava os que ainda choravam a tragédia de ver amigos soterrados, amigos desalojados e desamparados em pleno centro da cidade, no Largo Paissandu. Deus morava ali, até ontem.

A onda que culpabiliza o abatido por seu abatimento e o desamparado por seu desamparo, atingiu em cheio os movimentos que lutam por um teto. Arrancaram gente e coisas sem distinguir quem era gente, o que eram coisas. Arrancaram Deus e o lançaram junto aos livros, as roupas, os brinquedos e caixas.

Pai, perdoa os porque eles realmente não sabem o que fazem.

Marcelo Santos é jornalista e escritor. Escreveu para as principais publicações evangélicas brasileiras. Atualmente trabalha como ghostwriter e escreve reportagens para publicações do SESC e da Rede Brasil Atual. É pai de Guilherme, Caio e Gustavo.

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