Deus e o Diabo na terra Brasil

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readAug 11, 2017

Ódio na política, linchamentos morais, racismo, sexismo, homofobismo, aversão à religião do outro: ações de intolerância em relevo no Brasil

Fotografia: Marcela Laskoski, Chapecó, Santa Catarina, Brasil. Título: Madalenas. Behance

O Diabo é, na tradição cristã, a significativa encarnação do mal. O termo diz muito: diabolos, do grego, “aquele que divide”. Nesse sentido, enquanto Deus age para unir, harmonizar, trazer paz, o Diabo trabalha na oposição: divide, confunde, traz violência. Há variadas interpretações, religiosas e científicas, antigas ou modernas, de como se dá a existência deste mal encarnado. O que importa é como o significado do diabolos nos ajuda a refletir sobre divisões e a falta de paz que afligem o tempo presente no nosso país. Entre elas está a intolerância, a aversão e a demonização do Outro Diferente, muito evocadas para explicar o fenômeno social que temos vivido no Brasil.

Ataques verbais e físicos experimentados em espaços públicos, registrados por escrito, em áudio e imagens nas mídias tradicionais e digitais, têm marcado posicionamentos e debates rasos em torno da crise política em curso. Rótulos pejorativos são atribuídos para classificar quem se coloca de um lado ou de outro nas disputas políticas. Cores passam a ser expressão de disputa, como o verde e amarelo, o preto e o vermelho. Em relação a esta última, pessoas que vestem roupas com a cor (historicamente associada a grupos contestatórios do status quo), ou fazem uso de acessórios com ela, são agredidas verbal e até fisicamente em público, ainda que não tenham qualquer posicionamento político.

Líderes e personalidades políticas são hostilizados em espaços públicos, até mesmo em seus momentos particulares de lazer. A vida íntima de alguns deles é desvelada e oferecida em linchamento moral. Dizeres em manifestações políticas internéticas pregam a eliminação dos adversários, como um “Big Brother de verdade”, descartadas quaisquer possibilidades de diplomacia, de condução política e até de garantia de preceitos constitucionais, por meio de ações absolutas: tirar do cargo, prender, até mesmo matar.

Uma Presidente da República foi retirada do cargo em 2016, para muitos, com base em críticas não por suas ações na governança do País, mas por sua condição de mulher: foi atacada e ofendida como “vaca”, “vadia” (algumas das expressões mais amenas). Isto remete aos intensos casos de sexismo e de homofobia vivenciados no dia-a-dia, que demandam urgente atenção às questões que envolve os gêneros no campo social, que é demonizado por muitos.

Somam-se a isto as frequentes manifestações de racismo: além de povoarem mídias sociais, há destacados casos em estádios e quadras de esporte e expressões explícitas nas páginas de mídias sociais de agressão até mesmo a celebridades. Este “racismo nosso de cada dia” é enfrentado intensamente por negros e negras no seu cotidiano, na escola, no trabalho, na internet, nas abordagens policiais seletivas. Estas, não poucas vezes, resultam em mortes, insanamente aplaudidas. E aqui se agrega a celebração da possibilidade de lotar ainda mais os presídios brasileiros com adolescentes. O conhecido ataque à menina Kailane Campos, em 2015, quando saía de um culto de candomblé no Rio, evidenciou uma situação de aversão religiosa. O que sempre foi uma realidade no Brasil passa a ocupar espaço nas mídias. E a maior incidência se refere às religiões de matriz africana, em estreita relação com o racismo.

Ódio na política, linchamentos morais, racismo, sexismo, homofobismo, aversão à religião do outro: ações de intolerância em relevo no Brasil. Divisão, confusão e violência são suas marcas. Por isso são diabólicas. Age diabolicamente quem as promove e as pratica. Nesse sentido, são diabólicas as grandes mídias, que, por meio de interesses econômicos e políticos das onze famílias que as controlam, negam ao público informação ampla e responsável, e tomam partido, incitando a confusão e promovendo ódio e negação do diálogo. Estão também incluídas neste grupo, de forma contraditória, até mesmo lideranças religiosas que se apresentam como agentes de Deus e combatentes do Diabo, ocupando espaços políticos e midiáticos. Já alertava Jesus de Nazaré: “pelos frutos os conhecereis”. E os frutos que tais lideranças produzem na política, nas mídias, nas ruas, têm sido mais promoção de aversão e intolerância.

Mas sempre há chance de exorcizar o Diabo: expeli-lo do processo. Por isso há que se ter esperança da presença de pessoas e grupos, religiosos ou não, que atuam pela superação das ações diabólicas. Tem muita gente em espaços públicos fazendo exorcismo com a produção de espaços de paz e diálogo, no oferecimento de fontes alternativas de informação, no chamado à paz com justiça. Essas pessoas e grupos são, boa parte das vezes, invisíveis, por conta dos processos midiáticos diabólicos. A despeito disto eles/as estão por aí, como fermento na massa, tentando juntar e não dividir; tentando in-formar (dar forma/dar liga) e não de-formar. Não vou nomeá-las desta vez. Deixo o desafio, para quem ler este texto, de fazer o exercício de lembrar quem são e se somar a elas. A paz com justiça agradece.

Magali Cunha. Jornalista, docente e pesquisadora da Universidade Metodista de São Paulo

(versão revista e atualizada de texto publicado pela autora na coluna Religião, do jornal O Globo, 9 de julho de 2015)

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