Deus quis ser gente

Redação — Mosaico
Instituto Mosaico
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2 min readMar 7, 2018

Por Marcelo Santos

Deus desfilava sua imagem sobre as águas sem vida de uma eternidade desimportante. Desimportante porque, se não há saudade e nem expectativa, não há razão para que os dias sejam infinitos. Mas Deus mudou a cena. E plantou pé de gente no seu jardim. E, do alto, sempre do alto, assistia, cedia e agia. Apoiando os seus grandes pés sobre as nuvens, decidia, escolhia, conduzia, acendia e apagava o que bem queria entre aquele monte de gente que se multiplicava sem parar.

Seu povo o temia. Grande. Soberano. Senhor dos Exércitos. Não foram poucos os predicados tentando contornar e dar forma a força avassaladora de sua divindade. E Deus regeu assim por um bom tempo. Mas quando já não havia mais dúvidas do seu supremo poder. Quando do oriente ao ocidente, todos sabiam que era Ele quem determinava tudo e nada lhe era impossível, Deus quis ser igual àquela gente confusa que ele, por ordem natural das coisas, era o Senhor.

Deus precisava ser gente pra experimentar o cálice do amor. Não que amor seja coisa só de gente e não de Deus. É que pra amar é preciso se ver como o outro. De outra forma não é amor; é devoção, idolatria, admiração ou endeusamento. E Deus quis mais do que ser endeusado, quis ser amado. Quis ser como o outro.

Não existe amor maior do que ver no outro seu próprio reflexo, como se o outro fosse um espelho. Como se o outro fosse a ti mesmo. Não há amor que não veja no outro todas as possibilidades explosivas que a gente vê dentro de nós. Do mesmo modo, olhar com condescendência suas sombras e motivos inglórios que estacam a caminhada. Como se a desculpa que estendo ao outro fosse a mesma que estendo a mim pela preguiça do levantar da cama. Do postergar o trabalho. Do mentir e enganar ao ser cego pelo desejo e ambição.

Deus não quis ser endeusado. Quis ter amigos e parecer com eles. Deus quis ser gente pra que a gente pudesse também aspirar a essência divina. Deus é amor. E o amor é uma possibilidade acessível pra qualquer pessoa. Da criança ao mais velho. Da puta ao corrupto. Do ladrão a mim.

Marcelo Santos é jornalista e escritor. Escreveu para as principais publicações evangélicas brasileiras. Atualmente trabalha como ghostwriter e escreve reportagens para publicações do SESC e da Rede Brasil Atual. É pai de Guilherme, Caio e Gustavo.

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