DIAS AZEDOS

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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3 min readAug 21, 2019

Por Valdemar Figueredo (Dema)

Foto: Pablo Punk, Canva

Figura de linguagem em que o povo hebreu é comparado a uma plantação de uvas. As ações do agricultor: escolheu um bom terreno — outeiro fertilíssimo; limpou-o das pedras; plantou mudas; edificou uma torre; construiu um lagar; investiu recursos; dedicou tempo; deixou de fazer outras coisas. O agricultor carregava a esperança. O que ele almejava? Boas colheitas. Mas colheu uvas azedas. Frustrado, desprezou a vinha que só produzia uvas bravas.

Por parte do agricultor, todas as condições foram dadas para que a produção fosse boa.

“Fiz por ela tudo o que podia, então, porque produziu uvas azedas em vez de uvas doces que eu esperava?” (Isaías 5.4).

A ganância azeda toda produção coletiva. Latifundiários sempre prontos a despejar outras famílias para estender as suas propriedades. Os caras queriam colocar cercas com cadeados na terra da promessa. Quem vive cheio de ambição é capaz de achar que o grande dever de Deus é potencializar os seus projetos pessoais. Nesta dimensão, certamente, produzirá uvas azedas.

A quebra de confiança azeda as relações. Quando as intenções são questionadas não há mais o que dizer, nem pedir, muito menos sugerir. Explorando a figura de linguagem, no mundo do racionalismo técnico há quem prefira os manuais à companhia dos mestres. Seguem as evidências e fogem do Mistério.

A autossuficiência azeda a fé em Deus. Têm pessoas que não esperam nada de Deus porque supõem que podem tudo sozinhas. Antes da colheita fazem dívida por conta e preparam a campanha de marketing. Com gráficos otimistas, convencem financiadores que até a rolha da garrafa está na ponta do lápis. Parece que pensaram em tudo e vislumbram bom vinho na garrafa. No entanto, a vida é um amontoado de imprevistos.

“A soberba precede a ruína, e a altivez do espírito, a queda.” (Provérbios 16.18).

O filósofo grego Diógenes, conhecido pelo seu desapego, vivia livre de tutelas, foi contemporâneo do filósofo Aristipo, que pertencia à corte real e por isso mesmo sabia fazer concessões aos poderosos. Num encontro, Aristipo criticou: “Você não precisava estar se alimentando de restos como este prato de lentilhas se se submetesse ao rei!” Ao que Diógenes respondeu: “Você não precisaria se submeter ao rei se tivesse aprendido a se contentar com lentilhas”.[1]

Sobre o mesmo Diógenes, conta-se que o rei foi visitá-lo com pompas e circunstâncias. Mas Diógenes estava seminu tentando se bronzear. O rei declarou a sua grande admiração pelo mestre e numa típica fala de poder declarou: “Peça o que quiser e eu lhe darei!” Diógenes levantou a cabeça um pouquinho e mandou: “Majestade, sai da frente do meu sol!”

Que a canção brote a despeito dos resultados. Quanto à qualidade das uvas, depois de fazermos tudo que estiver ao nosso alcance, aprendamos a conviver com os imprevistos sem azedar. Que tenhamos a capacidade de avaliar e recomeçar sem perder a canção.

Deus fez grandes investimentos, mas o seu povo não deu retorno. Ele continuou tentando mesmo depois do resultado frustrante. A PRODUÇÃO AZEDOU, DEUS NÃO.

[1] PIQUEMAL, Michel. Fábulas filosóficas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009, p.46.

Valdemar Figueredo (Dema)

Professor universitário, escritor e pastor. Editor e colunista do Instituto Mosaico. Graduado em Teologia (STBSB, 1993) e em Ciências Sociais (IFCS-UFRJ, 2000). Mestre em Ciência Política (UFRJ, 2002), Doutor em Ciência Política (IUPERJ, 2008) e em Teologia (PUC-RJ, 2018).

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