DIREITOS HUMANOS EM AUSCHWITZ? Ética e desumanização

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
Published in
4 min readDec 10, 2019

--

Por Valdemar Figueredo

Foto: Reprodução

As músicas executadas no campo de extermínio impunham o ritmo da marcha. Não havia vontade, nem vigor, muito menos a possibilidade de passos destoantes. Marchavam como autômatos. Só após as pessoas serem aniquiladas é que seriam levadas à morte. A extirpação da humanidade precedia a morte.

Ir e voltar do trabalho forçado no ritmo da música. Marcha fúnebre? Antes fosse! Marcha da aniquilação da vontade, coreografia dos homens desumanizados, dança dos embotados, teatro dos apagados, missa de corpo presente em que o defunto se desloca.

Primo Levi esteve atento aos códigos simbólicos que vigoravam no grande palco de Auschwitz, o seu relato não se restringe à pura descrição, ele explora os sentidos, as linguagens que punham homens de diversos países e diversos idiomas sob uma mesma compreensão. Num termo por ele cunhado: torre de Babel.

A consideração de que houve em Auschwitz dias bons causa nos leitores um sentimento dúbio: temos a sensação de conforto, um tipo de intervalo do sofrimento, para logo depois concluir que tal dia excepcional servia para enfatizar o sofrimento ordinário.

Os algozes proporcionavam alívios esporádicos as suas vítimas e assim as induziam a abandonar os seus escudos internos. Quando expostas, eram surpreendidas com mais sofrimentos, pois as encontravam vulneráveis.

Danava-se quem se distraía e se humanizava.

Se este sentimento nos ocorre, muito mais contraditório foi para Levi e seus companheiros de desgraça. O dia foi considerado bom porque o sol apareceu depois de longo e penoso inverno. O dia pareceu especial porque conseguiram uma porção a mais de sopa. O dia bom foi um hiato, uma exceção, algo que revelou o quanto estavam desumanizados.

Estudar certos aspectos da alma humana pode ser penoso. O mergulho de Levi foi asfixiante. Ele examinou a alma humana em condições excepcionais e chegou à conclusão que erguer teorias sobre a natureza humana e julgá-la é uma tolice. Levi afirma com este livro que a ação humana só pode ser julgada individualmente, caso a caso.

Chocante, em termos dos valores, pensar que em condições tão adversas os párias do sofrimento organizaram uma sociedade de desiguais fundada no egoísmo. Funcionava no gueto uma “economia de mercado”. Havia moeda corrente, cunhada pela frieza humana e não pela alta temperatura dos afetos. Existiam posições de privilégios, os notáveis, os que conseguiram porções de sopa e pão a mais por estarem em posições estratégicas. Tinha o locus das negociações onde se podia observar os “ricos” e os pobres. Tratava-se de uma típica economia de mercado. Segundo o relato do autor, o mercado funcionava com uma lógica que era compartilhada pelos miseráveis judeus. Grupos de diversas nações se expressando em diversos idiomas, mas porque o faziam dentro do mesmo “mercado”, compartilhavam dos mesmos valores simbólicos.

Os homens estavam divididos em duas categorias: os que se salvam e os que se afogam. O marco divisor seria simplesmente a capacidade de sobrevivência. A solidão profunda a que cada um estava submetido os equiparava. Partiam de um patamar comum: o vazio. Então, deduzem alguns, na luta pela vida sucumbem os mais fracos e sobrevivem os mais fortes. Vigorava o sinistro processo de seleção natural.

Os afogados seriam aqueles que eram inaptos ou por azar não se adaptaram ao terrível mundo do campo de concentração. Multidão anônima continuamente renovada e continuamente igual. Uma massa humana de homens opacos, sem brilho, cabisbaixos, esgotados, apagados.

O caminho da salvação podia se dar através de uma luta incessante pela vida, tudo o mais era abafado uma vez que o instinto de vida se impunha. Isso ocorria através da ocupação de postos de trabalho estratégicos, eram funções que os punham — entre muitas aspas — na condição de “proeminentes judeus”.

Nos sistemas totalitários, o projeto sempre foi massificar. Não há povo, comunidade ou sociedade. Só há massa terrivelmente humana.

O fundo musical ininterrupto não era uma expressão de humanização, mas um mecanismo de tortura. Perturbar até enlouquecer. Somente quem se robotizava não enlouquecia.

Robotizados, esgotados, apagados, opacos, emudecidos, embrutecidos e desumanos. Aderir à massificação nos campos de extermínio transformava-se em estratégia de sobrevivência. Por mais contraditório que pareça, aderir à massificação e à robotização sem prestar atenção na música era sinal de sanidade, sinal de vida, resquício de humanidade.

Referência bibliográfica

LEVI, Primo. É isto um Homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988

LEVI, Primo. Os Afogados e os Sobreviventes: Os Delitos, os Castigos, as Penas, as Impunidades. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990

Valdemar Figueredo (Dema). Professor universitário, escritor e pastor. Doutor em Ciência Política (IUPERJ) e em Teologia (PUC-RJ).

Twitter: @ValdemarDema2

www.institutomosaico.com.br

--

--