Doa-se livros caros

Redação — Mosaico
Instituto Mosaico
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5 min readJan 22, 2018

Ler, reler, tresler. Um grande livro deve ser lido e relido durante toda a vida.

Quando um livreiro de banca de calçada deixa no fim do dia os livros no chão, todos arrumadinhos para o dia seguinte, sem qualquer preocupação de ser roubado, nós podemos fazer algumas considerações sobre o destino de um povo. Um vendedor de relógios não faria o mesmo. Mas antes que alguém possa pensar que estou empreendendo algum protesto por amor aos livros, como faria um potencial fundador de bibliotecas comunitárias, postulante ao prêmio do tipo “gente que faz”, eu devo, preciso dizer que não, não se trata disso.

Penso, inclusive, que deveríamos ler menos livros, para assim lermos muito um livro, um autor. Esse um não é de natureza quantitativa, mas qualitativa. O um tem o caráter do que é essencial. Isso significa que podem ser dois ou mais livros/autores; mas, como são essenciais ou clássicos, devem ser degustados com paciência, saboreados com o tempo. Portanto, o meu espanto com aqueles livros na calçada não se deve ao fato de que estavam expostos à chuva que caía ontem sobre o Méier, Rio de Janeiro (Darei até o endereço preciso: Rua Dias da Cruz, na calçada do Clube Mackenzie. A propósito, apareçam!). Sobre o vendedor, o conheço de vista e de chapéu. Uma figura muito simpática e cordial. Sua simpatia de mercador de livros não é o que mais me chama a atenção, mas a sua aparente confiança no povo, ou seria desconfiança? Veremos.

Ele também vende alguns DVDs eróticos e CDs da Jovem Guarda, mas com esses ele tem o cuidado de levá-los consigo, pois não confia no povo. Ora, confia ou não confia?

Confia por desconfiança.

Mas é preciso compreender essa “desconfiança” com aquele sentido que damos quando não levamos fé que alguém seja capaz de fazer algo. Esse é o sentido que conferimos à seguinte situação: “Vou deixar isso sobre a mesa, mas desconfio que ele comerá”. Trata-se de uma desconfiança desdenhosa, ou uma confiança que se fia a partir de um total descrédito. É uma desconfiança, digamos, positiva, pois confere um caráter positivo ao ato negativo de desconfiar.

Dessa forma, com a sua desconfiança ele mostraria ironicamente que confia no povo, ou seja, acredita que não haveria alguém capaz de roubar “livros”, é claro, não por honestidade, mas por que a leitura não é uma virtude do nosso povo. Diferentemente, é a desconfiança negativa, aquela desconfiança que desperta medo e insegurança, a típica desconfiança que temos acerca de um suspeito. A mesma que o livreiro sente quando guarda com zelo os DVDs eróticos e os CDs da Jovem Guarda.

Mas, afinal, o que me deixou inicialmente pasmado com a cena? Não foi o repugnante ato de deixar livros se estragarem sob a chuva? Não. Vi alguns que até mereciam esse bom fim. O motivo do meu pasmo está em torno de dois livros: Histórias extraordinárias, de Poe, e O Vermelho e o negro, de Stendhal, ambos em capa dura. Eu não tinha esse livro de Poe, apenas o de Stendhal, mas, apesar disso, resgatei da chuva também Stendhal, desfazendo assim uma injustiça contra a sua dignidade. Resgatei, claro, roubando-os! Sem qualquer remorso e pudor. O livreiro já estava longe, jantando despreocupado em sua casa, certamente.

Preciso deixar algo claro: não fiquei pasmado com os livros em si, mas por amor a Poe e a Stendhal; ficaria pasmado também se fosse Caeiro, Guimarães Rosa e outros. Não me sensibilizei exatamente pelos livros na chuva, mas por aqueles dois livros/autores. Com isso preciso dizer mais uma vez: não defendo que devemos ler mais livros, muitos livros. Mas que devemos ler Poe, Stendhal, Caeiro. Ler, reler, tresler, como diz um certo mestre. Um grande livro deve ser lido e relido durante toda a vida.

Como não sou um ladrão completo, amanhã voltarei lá para pagar o livro.

Acabei de voltar do livreiro… ainda mais pasmado, mais espantado que ontem! Não cometi qualquer transgressão; minha alegria de pecador durou pouco! Os livros não estavam no chão para venda. Ledo engano! Pasmem também: eles estavam ali para “doação” — termo usado pelo livreiro. Contudo, percebi que a coisa não era bem assim, tão dadivosa! Pois ele me confidenciara que possuía muitos livros, e sua banca era pequena demais para a exposição de todos. Aqueles que não possuíam liquidez eram obviamente “doados”.

Enquanto falava, desviei os olhos para banca e observei alguns livros de culinária, livros pragmáticos do tipo “Dez passos para…” (o sucesso no amor, no trabalho, para o crescimento da igreja, etc.), o Kama sutra (Interessante!), e, claro, não poderiam faltar aqueles DVDs eróticos e os CDs da Jovem Guarda. Entretanto, em meio a toda aquela distração livresca estava lá um belo exemplar em capa dura de O Nome da rosa, de Humberto Eco. Perguntei pelo preço do livro, ele me respondeu sorrindo de través: “É cinco reais”. Esbocei um sorriso, mas contive meu novo pasmo, receoso de que o livreiro se entusiasmasse com a minha alegria, com o meu súbito bom humor e com os humores do mercado de livros. Como eu não possuía aquela tradução do livro, levei-o para casa por cinco reais.

Conclusão: o livreiro não confiava no povo por desconfiança (desconfiança positiva) nem era tão “dadivoso” assim. Eis o duro fato: ele apenas confiava que o povo pudesse ajudá-lo em sua logística de vendas, apesar de não ter logrado êxito. Eu também não poderia ajudá-lo, recomendando que pusesse tais e tais livros essenciais sobre a pequena bancada, pois a inegável liquidez dos livros colocados à venda sobre a banca me dissuadia de fazê-lo.

Resumo: para o povo e o mercado valem mais 50 laranjas insossas sobre uma banca que uma saborosa sobre o chão da calçada. Por outro lado, é bom que o termo “doação” seja usado, pois para os clássicos não há preço, nada pode pagar seu valor. Ele é sempre um dom: um presente apenas para quem está à sua espera. Essa espera é o seu verdadeiro preço.

Eduardo Campos. Doutor em Filosofia (UFRJ), Mestre em Filosofia (UFRJ), Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ), Licenciado em Filosofia (UFRJ). Atua como pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ). Professor do Instituto de Psicologia Fenomenologico-Existencial (IFEN).

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