DOS CELEIROS ÀS ESTRADAS: A VOCAÇÃO INTERDISCIPLINAR

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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3 min readJul 26, 2018

Bruno Albuquerque

Foto: João Oliveira, Caminho de Santiago

Certa vez ouvi um professor criticar o fato de que um dos primeiros físicos estudava a lua enquanto louvava o Criador em um poema por tamanha beleza e perfeição, tendo deixado por escrito o testemunho dessa conjugalidade de experiências numa obra científica. Tal julgamento me pareceu anacrônico, mas me fez refletir sobre o fato interessante de que os grandes autores do passado mesclassem ciência e arte, matemática e espiritualidade. Talvez tenham sido mais felizes do que aqueles que tentam fazer o mundo caber em caixinhas cartesianas.

O olhar que recorta pressupõe a coisa morta. É por isso que só é possível dissecar cadáveres. No corpo vivo, há que se aproximar respeitando a linguagem que nele habita, as dores e alegrias inscritas na sua carne. Há que se proceder com rigor e método, sem com isto matar a leveza da vida, nem o espírito de poesia. Os músicos sabem o quanto há de matemática na música, e os matemáticos sabem o quanto há de música na matemática, porque eles ouvem nela a música do universo.

Meditando sobre o caminho que me levou a estudar psicanálise e teologia, fiquei pensando nas peculiaridades da vocação para a interdisciplinaridade, que também precisa sempre estar em diálogo com as especializações. Minha experiência até aqui vem mostrando a possibilidade de oferecer outros tipos de contribuição que uma única disciplina não consegue, criando possibilidades insuspeitadas de interlocução.

Quando estou trabalhando e preciso ler textos em inglês, francês e italiano, aprendendo alemão, recorrendo a noções de grego, hebraico e latim, experimento uma convicção íntima de ser chamado a continuar explorando esse caminho interdisciplinar, insistindo numa direção distinta do tecnocentrismo e do utilitarismo. Sinto que esta é a pequena parcela que me cabe investigar nesse universo gigantesco e cheio de questões interessantes. O humano não cabe nos métodos que constrói.

Ao chegar ao final do dia com a sensação de que empreguei todos os esforços possíveis para fazer um pequeno avanço na pesquisa, lembro-me da conclusão de O hobbit, do autor inglês J. R. R. Tolkien. Numa conversa com Gandalf, o Cinzento, o pequenino Bilbo Bolseiro reconhece que, após tantas aventuras, ele pode perceber com um novo olhar que é apenas mais uma pequena pessoa nesse mundão: “Você é uma ótima pessoa, Sr. Bolseiro, e gosto muito de você; mas, afinal de contas, você é apenas uma pessoazinha neste mundo enorme!”, diz o mago. “Ainda bem”, responde o hobbit, rindo[1].

Se tivesse ficado em sua casa, no Condado, na toca em que os hobbits se escondem do resto do mundo, Bilbo jamais teria tomado consciência de sua pequenez, e ainda estaria satisfeito com a barriga cheia e a despensa entupida. Mas ele não foi como o rico insensato da parábola lucana, que derrubou seus celeiros para construir maiores[2].

Abandonando suas seguranças, o Bolseiro se aventurou e passou dos celeiros às estradas, apostando que mais rico é aquele que caminha sem nunca acabar de chegar.

[1] Tolkien, John Ronald Reuel. O hobbit. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 292.

[2] Cf. Lc 12, 16–21. Bíblia. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, pp. 1811–1812.

Doutorando em Ciência da Religião (PPCIR-UFJF), mestre em Psicanálise (PGPSA-UERJ), bacharel em Psicologia (IP-UERJ), pesquisa e escreve sobre o diálogo entre psicanálise e religião

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