ENSINO DOMICILIAR PARA AUTISTAS, QUEM SE BENEFICIA?

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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5 min readJun 25, 2019

Por Valdemar Figueredo (Dema)

Este é o segundo da série de três artigos. Recomendamos que leia o primeiro. Clique aqui.

Foto: Canva, Divulgação

Deixando as elucubrações de lado e ficando com os fatos, o que mais me inquietou na entrevista da ministra foi ela listar entre os principais beneficiários do ensino domiciliar as crianças portadoras de deficiências físicas e cognitivas, principalmente os autistas. De tão absurdo, e para que os leitores não achem que eu estou de má vontade distorcendo a fala da Damares, segue aqui o áudio da entrevista na integra. CLIQUE NO LINK E OUÇA:

“Os pais das crianças com deficiência, pais de crianças com autismo, esse é um grupo muito grande que tem conversado com esse Ministério, eles gostariam de educar os filhos em casa. Muitos deles entendem que os filhos não estão se adaptando na escola, tem criança com autismo que sofre mais indo para escola do que ficando em casa, então (a proposta) também vem para atender essa parcela significativa da população — disse a ministra.”

O exemplo não poderia ser pior. Na verdade, caso a ministra se aconselhasse com as pessoas certas, entidades de pais, grupos de pesquisadores e profissionais que lidam no dia a dia com o autismo, descobriria que a luta é justamente para tirar essas crianças cheias de vida e potencial do quarto.

Com isso, não ignoro as diversas modalidades do autismo e como os pais vivenciam o espectro de diferentes formas. Os pais são afetados diretamente. Estatísticas apontam números significativos em que as mães são deixadas sozinhas para enfrentar com os seus filhos os transtornos do espectro autista (TEA). Lembrar que não são apenas os filhos, os pais experimentam diversas situações de exclusão e constrangimentos sociais. Tais inadequações tem mais a ver com o despreparo da sociedade “saudável” do que com as “esquesitices” das “famílias autistas”.

Faço essa breve digressão para afirmar que compreendo que algumas mães e pais extremamente cansados no papel de mediadores entre escola e filhos prefiram abreviar o processo dolorido cortando todos os laços. Esconder a cria não por vergonha ou por maldade, mas por puro instinto de proteção. O tipo de proteção que fará muito mal aos protegidos e aos protetores.

Daí, a ministra afirmar que os pais das crianças com autismo gostariam de educar os filhos em casa, é de uma irresponsabilidade tremenda. Não confundir relatos pessoais, perfeitamente legítimos e honestos, com pesquisas qualitativas. A propósito, é preciso saber minimamente interpretar os dados quantitativos e qualitativos.

Caso a ministra estivesse minimamente informada saberia que as questões que ela levanta para justificar o ensino domiciliar estão em pelo menos duas décadas superadas. Uma ministra responsável em promover os Direitos Humanos não poderia estar tão despreparada diante de uma questão tão séria como essa.

Ministra Damares, não se deixe instrumentalizar dessa forma. As famílias que lidam com os transtornos do espectro autista (TEA) precisam que o Ministério da Educação (MEC) faça investimentos significativos para dotar as escolas públicas de recursos humanos e materiais a fim de receberem adequadamente essas crianças. Não é perfeita, mas a legislação vigente é muito melhor do que o seu governo está propondo. Atuem para que as escolas particulares cumpram a lei e parem de dar as desculpas esfarrapadas que estão no limite da cota de matrículas de crianças “especiais” no ano letivo vigente.

O projeto de ensino domiciliar beneficia, entre outros, aos governos que não querem assumir as suas responsabilidades frente às famílias que lidam com o autismo priorizando as contas públicas em detrimento das pessoas, bem como aos empresários da “educação” que raciocinam como empreendedores nos negócios (dinheiro, capital) e não como professores.

Políticas públicas que visam promover ambientes de aprendizado apropriados para crianças com necessidade específicas, por certo, passa pela formulação dos orçamentos e pela valorização dos professores da rede pública e dos demais profissionais implicados. A senhora, ministra, está empreendendo um movimento reacionário. Retroagindo umas duas décadas facilitando para gestores públicos tecnocratas e donos de escolas abutres incentivando que pais exaustos, e muitas vezes intelectualmente incapazes, assumam a missão de ensinar aos seus filhos o DEVER DA ESCOLA em casa, sempre em casa, cada vez mais em casa.

A senhora deveria estar encaminhando projetos no sentido oposto, dando suporte para que os responsáveis se sentissem seguros para levar seus filhos regularmente à escola e isso ajudaria muito na interação social e capacidade de comunicação deles. Não me refiro apenas aos autistas. A escola deveria ser um ambiente multidisciplinar bem pago, capacitado, valorizado, constantemente treinado para oferecer às nossas crianças serviços que vão muito além de uma nota azul abstrata num papel que chamam de boletim. Professores, psicopedagogos, psicólogos, artistas das diversas artes, médicos, fonoaudiólogos, nutricionistas, assistentes sociais, agricultores, pessoal do circo, artesões, padeiros, bibliotecários, enfim, gente que entende a escola como projeto humano libertário e emancipador.

Deixa a outra parte do governo fazer as contas. Se querem lhe delegar o papel da “louca” que suscita as polêmicas que circulam dias pelas redes sociais, então, Damares, que a sua “loucura” seja lúcida lambuzada nos Direitos Humanos. Surta pelas famílias que sofrem vendo seus filhos no canto da solidão. Briga por elas. Grita por elas. No fundo, no fundo, os pais não querem e nem podem atrofiar seus filhos enjaulando-os.

Caso saiba que mães estão pensando tirar os filhos da escola por inadequação, enquadre a escola em alguns casos e em outros ajude-as a cumprir com as suas obrigações. Lembre-se, a senhora é ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Valdemar Figueredo (Dema)

Professor universitário, escritor, pastor. Editor e colunista do Instituto Mosaico. Graduado em Teologia (STBSB, 1993) e em Ciências Sociais (IFCS-UFRJ, 2000). Mestre em Ciência Política (UFRJ, 2002), Doutor em Ciência Política (IUPERJ, 2008) e em Teologia (PUC-RJ, 2018).

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