Entre a vida e a morte, poesia e mistério

Redação — Mosaico
Instituto Mosaico
Published in
4 min readJan 25, 2018

Por Bruno Albuquerque

Eu me lembro de quando era criança e adorava tocar as plantinhas que chamavam de dormideiras. Elas estavam vicejantes, mas bastava encostar e elas se recolhiam completamente. Naquela época, ainda não tinha conseguido perceber que estava assombrado com o mistério da vida e da morte. Diante dele, fazemos poesia e memória. Na mitologia grega, a deusa da memória é Mnemosine. Responsável por preservar do esquecimento, é curioso que ela seja também aquela que inventa as palavras e a linguagem e que fala através dos poetas[1].

Também fiquei impressionado quando era pequeno com a música “Epitáfio” dos Titãs. Era triste ouvir alguém à beira da morte dizendo que não havia amado e chorado o suficiente. Decidi que jamais permitiria que aquilo acontecesse comigo. Quando descobri que “epitáfio” era a mensagem inscrita na lápide, fiquei pensando como deve ser difícil escolher uma frase para falar de uma vida. Tentei imaginar o que eu gostaria que escrevessem na minha. Queria escolher uma palavra bíblica, como aquela em que o profeta Isaías afirma que Deus se tornou seu salvador, a razão da sua força e do seu canto[2]. E queria escolher também uma palavra leve em tom allegro moderato, como o epitáfio daquele escritor mineiro: “Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino”.

O desejo de ser lembrado me faz lembrar o desejo de desenterrar e transmitir as palavras que habitam dentro de nós, movidas pelo espanto com a vida e a morte. Para aqueles que têm fé, a morte remete ao desejo de mergulhar no abismo do mistério da poesia divina, na esperança de que possamos continuar nossa poesia numa vida mais além da morte. Mas para todos nós, crentes ou não, morrer terá sempre um peso de juízo final, como disse Lacan na conclusão do seminário sobre a ética da psicanálise: agiste em conformidade com o desejo que te habita?[3]

É bela a maneira como vida e morte se entrelaçam no filme Viva: a vida é uma festa[4], lançado no Brasil neste mês. Fui surpreendido pela delicadeza e profundidade desta animação. Esta conta a história de uma família mexicana que, como de costume em seu país, no feriado do Dia dos Mortos rememora seus antepassados, acendendo velas e preparando as comidas preferidas deles. Entretanto, nesta família há também uma grande ferida. Miguel Rivera, um menino de doze anos, secretamente sonha em se tornar músico, mas não pode realizar este sonho, pois seus familiares proíbem terminantemente toda música. Isto porque sua tataravó havia sido abandonada junto com a filha pelo marido, que partiu para fazer carreira musical.

Na busca destas raízes cortadas, Miguel é transportado para o mundo dos mortos por circunstâncias inusitadas, conhecendo ao vivo e a cores aqueles e aquelas sobre quem ouvia falar e que só via em retratos antigos. Só a benção de um antepassado pode fazê-lo voltar à vida, mas sua falecida tataravó impõe uma condição: que ele nunca mais se envolva com música. Para não precisar se submeter a esta condição, o garoto decide encontrar o tataravô desaparecido, imaginando que por ser músico ele abençoaria seu caminho. De maneira semelhante ao que ocorre num processo de análise, é a busca pela verdade de sua história que possibilitará reconstruí-la, transformando-a radicalmente.

Na tradição cristã, a íntima conexão entre a morte e a vida é expressa no mistério pascal da morte e ressurreição de Jesus. Quando São Paulo transmite na Primeira Carta aos Coríntios o que recebeu da tradição das primeiras comunidades, ele descreve os gestos de Jesus na noite em que foi entregue, como ele tomou o pão e vinho e em seguida pediu: “fazei isto em memória de mim”[5].

Ao fazer memória de Jesus, a comunidade cristã rememora neste sinal o seu anseio de compartilhar sua vida. Este desejo de ser lembrado é belamente cantado na música “Lembre de mim”, que ocupa um lugar central na história de Miguel. Transitando entre o mundo dos vivos e dos mortos, o menino descobre as raízes que a originaram, deixando ressoar que talvez a música e a poesia sejam os acordes e os versos que embalam uma dança entre os vivos e os mortos.

“Lembre de mim

Hoje eu tenho que partir

Lembre de mim

Se esforce pra sorrir

Não importa a distância

Nunca vou te esquecer

Cantando a nossa música o amor só vai crescer

Lembre de mim

Não sei quando vou voltar

Lembre de mim

Se um violão você escutar

Ele com seu triste canto te acompanhará

E até que eu possa te abraçar

Lembre de mim”.

[1] Baseado nas anotações da conferência da psicanalista Denise Maurano intitulada “A dimensão cantante da palavra” e proferida no Corpo Freudiano Escola de Psicanálise — Seção Rio de Janeiro em 1º de agosto de 2017.

[2] Is 12,2.

[3] Jacques Lacan, O seminário, livro 7: A ética da psicanálise [1959–1960], Rio de Janeiro, Zahar, 2008, p.367.

[4] Este é o título em português do filme Coco, produzido numa parceria entre a Walt Disney Studios Motion Pictures e a Pixar Animation Studios.

[5] 1Co 11,23–25.

Bruno Albuquerque | Psicólogo clínico, mestre em psicanálise, estudante de teologia, pesquisa e escreve sobre o diálogo entre psicanálise e religião.

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