Escola sem partida

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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5 min readNov 9, 2018

Por Eduardo Campos

Foto: Divulgação da série Merlí

Um grande professor jamais demonstra alguma coisa. Quem quer demonstrar confunde conversa com performance e presume que entende de alguma coisa que os outros não entendem. O demonstrar professoral é a performance de uma presunção. Embora todo professor possa parecer um presunçoso (presume saber o que os outros não sabem) e aparentar ser um mero performático (porque pode perder-se na delícia de comunicar), é possível que uma aula seja tão somente a viagem da experiência de quem não sabe, ainda que possua algum conhecimento acerca do tema. Quando uma aula é apenas a viagem desse não saber, a despeito de todo conhecimento, posição, ponto de vista, ponto de partida, o professor jamais saberá o itinerário dessa viagem nem onde ela vai chegar.

Cada passo, no seguimento do caminho, é apenas um ponto de partida partido, abandonado pelo passo seguinte. O ponto de partida é a pegada de um passo que foi. A andança no caminho é feita de passos sucessivamente abandonados que nos acompanham na presença de cada passo que está por vir. O passo que translada suspenso no ar faz o passo que partirá ser tão importante quanto o passo partido. Aquele que se entrega à viagem está sempre a par da totalidade de um caminho que não pode ser partido.

O não saber e o não poder antecipar o fim dessa viagem, mesmo que o ponto de partida guarde um pouco do ponto de chegada, toda essa incerteza que acerca o viajante dilui, na sinuosidade do caminho, as referências cardeais para o caminhar. Mas essa incerteza que acompanha a caminhada do viajante é a sabedoria que sabe acolher todos imprevistos de uma jornada. Essa incerteza é o princípio do aprender. Dessa maneira, uma escola pode ser com partido contanto que se saiba que a viagem da aula é mais importante que o ponto de partida e o ponto de chegada. Um grande professor sabe que toda partida e toda chegada acontecem sempre na tensão do meio do caminho.

A sabedoria dessa viagem é maior que o saber do ponto de partida do professor e também maior que o saber do ponto de partida do aluno. O professor e o aluno que não sabem arredar o pé do ponto de partida tem algo a ensinar antes do início da viagem e, por isso, não querem correr os riscos do percurso. O medo de deixar o ponto de vista de onde se partiu é o senhor da fúria de toda partida. É dessa forma que a aula pode deixar de ser a experiência de aprender para tornar-se uma inflamada partida de apreensões. Estas configuram duas partes policialescas que buscam mutuamente a apreensão de delitos ideológicos. Os lados da partida fazem da aula a arena titânica de partidos convictos.

A valentia desse espírito aguerrido é vital para iniciar o pensamento, mas é a doçura no pensar que pode se deixar tocar por uma companhia inoportuna no caminho da viagem. A fixação contumaz de um dos lados da partida é a morbidez que acomete a mania de partido. Mas é no meio da viagem que se reparte uma dança que serena na harmonização de um partido-alto. As mãos só podem se encontrar nas umbigadas desse caminho que a todo tempo é partida e chegada. A aula é essa dança.

Os professores timoratos, que não se arriscam no caminho, costumam ser os melhores docentes para os melhores discentes, pois funcionam como despenseiros úteis para despensas utilitárias. O professor que guarda apenas a sabedoria da viagem é inútil. Ele sabe tornar inútil, por um instante, os inabaláveis pontos de partida e chegada. Sem essas referências, os alunos que armazenam utilidades desesperam-se em um trajeto sem para quê, aberto pelo professor inútil. É evidente que as coisas úteis são necessárias para a existência pragmática da vida mediana das gentes, mas o professor inútil guarda consigo o privilégio de ser aquele que, por um instante, pode transformar a seriedade decadente em brinquedo, a utilidade viciada em inutilidade. A viagem da aula é um jogo de inutilidades. É somente dessa forma que as coisas úteis podem ganhar de novo o sentido de uma nova viagem, para que assim possamos fazer das coisas um melhor uso. Das inutilidades é que nascem as boas utilidades.

Um grande professor jamais demonstra alguma coisa — ele apenas mostra. Mostrar é maior que demonstrar. O mostrar é nascente; o demonstrar é poente. O primeiro gesto apenas acompanha o percurso de uma parábola, o segundo acusa o seu fim, i.e., a conclusão da partida. Estando concluído, morto, o professor das finalidades, das utilidades, faz da sua aula um ritual fúnebre de conclusões e de seus alunos os coveiros de um mesmo partido, consortes de uma mesma morte. O professor inútil apenas mostra a nascente e celebra com os alunos a feitura da parábola que risca com todos os riscos a viagem solar; e é dessa forma que o professor que ensina, de repente, pode aprender uma nova forma de partir, de ser partida. Sua aula é a festa das sensações de apenas ver. Ele, como o mestre zen, apenas aponta, mostra a lua. Ai daquele que confunde a ponta do seu dedo com a lua! Ai daquele que faz do dedo do professor seu ponto de partida! (Esse, no máximo, será um político). Entre a ponta do dedo e a lua acontece a viagem sinuosa do olhar. E a educação é simplesmente a viagem dessa distância. Quando nos entregamos a essa distância estamos mais próximos de nós mesmos, da possibilidade de ver um todo que não se parte.

Eduardo Campos. Doutor em Filosofia (UFRJ), Mestre em Filosofia (UFRJ), Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ), Licenciado em Filosofia (UFRJ). Atua como pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ). Professor do Instituto de Psicologia Fenomenologico-Existencial (IFEN).

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