ESTAMOS PREPARADOS PARA TAMANHA AUTENTICIDADE?

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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3 min readDec 29, 2019

Por Patrícia da Motta

Foto: Rúben Gál, Pixabay

Não é fácil ser. Muita couraça, armadura, blindagem e seja lá o que for que distancia a gente de quem de fato somos, do que gostamos, do que odiamos, temos raiva ou escolhemos. Essa história do não ser, vem lá da infância. A gente é forjado a agir de maneira a agradar a mãe, o pai, a professora e os amigos. Mesmo que com isso a gente tenha que largar mão de fazer o que realmente queríamos.

Lembro bem da vergonha que tinha de alguém descobrir as minhas três chupetas que usava feliz da vida quando ia dormir, ainda aos sete anos de idade. Ficavam escondidas. Ninguém podia ver ou saber desse meu segredo, partilhado apenas por minha mãe e irmã. Não podia gostar de chupetas aos sete anos, era feio, já tinha passado da idade! Não podia ser!

Na adolescência não é diferente. Talvez seja o período onde se explora mais intensamente a inautenticidade. Revelar de quem gosta, contar as primeiras descobertas da sexualidade, chorar de saudade da mãe, rir quando estão te “zoando” só para não posar de “mané”, morrer de vergonha das espinhas que te atormentam, sentir ciúmes da amiga que te trocou por outra, se apaixonar, não ser correspondida e não poder sofrer com tamanha dor são pequenos lampejos do não ser nesse famigerado período.

A vida adulta chega avassaladora. Escolha de profissão, de parceiro, de religião, de amigos, tudo muito rápido e muito assertivo! Não há tempo de errar. Quanto ao ser, a autenticidade…. Não há tempo para isso, vamos “empurrar a vida com a barriga”, talvez um dia, quando as coisas se assentarem a gente faça escolhas genuínas! E assim a vida vai passando, se esvaindo, vida líquida…parafraseando Zygmunt Bauman.

Para ser é preciso esforço, desprendimento, relaxamento e até uma dosagem extra de loucura! É ousado ser!

Ser desconstrói, destrói, decepciona, entristece, desfaz ideias e ideais, causa antipatia, afastamentos e até tristeza. Ser não é alheio, é comigo. Minha iniciativa de romper, de movimentar, de ir em direção ao que há de mais pleno e livre dentro de mim mesma. É bem verdade que essa libertação é assustadora.

Como assim ser livre? Não sejamos ingênuos, não estamos preparados para tamanha autenticidade!

Assisti há pouco um filme denominado “ A vida em preto em branco”. Tudo funcionava normalmente nos tons de preto, branco e cinza, até que as pessoas começaram a ser, começaram a gozar, se apaixonar, sonhar, ter raiva, tristeza e tudo mais que nos torna humanos, simplesmente humanos, ou seja, coloridos. O desespero foi completo. A cidade se mobilizou. Estabeleceram novas regras. Tudo para que o colorido cessasse e tudo voltasse a ser sem cor, sem vida, sem verdade!

Colorir é expressar-se. Revelar-se é ser. O filme termina com a seguinte frase: “O que faremos agora?”. Com a leveza da ignorância do vir-a-ser do cotidiano os personagens respondem: “Eu não sei, eu não sei!”. Contentamento de quem entendeu que não há controle, mas há o aqui e agora para ser vivido e experienciado plenamente.

O esforço e iniciativa de ser, de me expressar “sem que” acordam comigo todos os dias. Melhor é ser interessante do que ser feliz, já dizia o psicanalista Contardo Calligaris. Ser interessante, ser sem graça, ser “maneiro”, ser chato, ser belo, ser feio, ser novo, ser velho, ser autista, ser neurótico, ser o que se quiser e que se dane (para não dizer outra coisa) os rótulos!

Assim: Sinto-me mais feliz simplesmente por ser eu mesmo e deixar os outros serem eles mesmos, como disse Carl Rogers.

Patrícia da Motta

Doutora em Psicologia Social (UERJ), professora universitária, psicóloga, psicoterapeuta. Diretora do Instituto de Psicologia da Abordagem Centrada na Pessoa

www.institutomosaico.com.br

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