EU JÁ ACREDITEI QUE O QUE ACONTECEU EM 1964 NO BRASIL FOI UMA REVOLUÇÃO

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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6 min readApr 6, 2021

Por Manoel Botelho

19 de abril de 2020. Manifestantes carregam faixa em que defendem o fechamento do STF e do Congresso, em Brasília. O presidente Jair Bolsonaro discursou durante protesto por intervenção militar. Foto: SERGIO LIMA / AFP

Este momento da história do Brasil entre 31 de março de 1964 tem diversas interpretações, alguns chamam de golpe e outros chama de revolução. Eu mesmo já chamei isto de revolução e hoje eu sei que um golpe, e que houve ditadura, mas o que mudou? Hoje eu quero escrever pra quem acha que é “impossível alguém defender a ditadura” e dizer não é impossível, eu mesmo já defendi.

Eu estudei no Colégio Militar de Curitiba, ou seja, durante sete anos da minha vida eu estive dentro de um ambiente militar, educacional, mas militar.

Como vocês devem imaginar, eu aprendi sobre este momento da história do Brasil como “A Gloriosa Revolução de 64” todo ano tínhamos algum evento, juntava-se todos os alunos e alunas no auditório para ouvirmos sobre este momento tão emblemático da história do Brasil.

Por qual motivo isto era tratado como “Gloriosa Revolução”?

Nestes eventos comemorativos nos apresentavam jornais da época com as diversas manifestações com pedido de intervenção militar, o povo nas ruas clamando pelos militares etc. Neste evento também era comum ter pessoas que viveram a época e que eram militares ou filho de militares que foram ameaçadas e até mesmo perderam amigos e parentes mortas pela “guerrilha comunista” e, claro, sempre a lembrança de que o Comunismo matou mais de 60 milhões em todo mundo, fotos dos museus do comunismo que tem em todo mundo, relatos de tortura, perseguição e morte que aconteceram pelos governos ditos comunistas em todo mundo. União Soviética, Cuba, Coréia do Norte, por exemplo.

E você pode perguntar, mas e os livros didáticos de história? Na minha época de Colégio Militar, nós usávamos todos os livros do MEC com exceção dos livros de história, aí a utilização era dos livros da BIBLIEX (Biblioteca do Exército)

Dentro desta narrativa, fica muito claro que a intervenção salvou o Brasil do comunismo pois, supostamente João Goulart (Jango) teria intenção de instaurar o comunismo no Brasil e isto não aconteceu graças a intervenção dos militares, evitando assim que mais de milhões de vidas fossem mortas no Brasil por causa do comunismo.

Neste sentido se você comparar as quase 500 mortes do período militar as 60 milhões de mortes dos governos comunistas ao redor do mundo, é uma revolução gloriosa, foi o sacrifício de poucos em favor de muitos, em favor do Brasil. Também era ressaltado nesta narrativa que a guerrilha comunista também perseguiu e matou militares brasileiros. Aí o número de mortes dos dois lados, seja do lado dos militares, seja do lado dos comunistas é quase o mesmo, (próximo de 500) dando parecer que a disputa foi justa, quase que como um empate.

O período pós-intervenção tem discussões até mesmo entre os militares: a permanência deles no poder poderia sim indicar um golpe. Se era para salvar o Brasil do comunismo não havia motivo para, uma vez o Brasil salvo, permanecer no poder. Mas quero focar no dia 31 de março de 64.

Eu apresentei esta narrativa toda pois o que precisamos é de informação, educação crítica e apresentação a diferentes perspectivas. Nem todo mundo que nega o golpe de 1964 é malvado ou a favor de alguma ditadura e arrisco dizer, na maioria das vezes a pessoa só não tem acesso à informação. Eu vivi este tempo de escola acreditando que não havia uma opção no meio do caminho ou era capitalismo ou comunismo e que, sem sombra de dúvida, o comunismo é a pior de todas pois matou milhões ao redor do mundo.

Nesta época se me dissessem “mas pessoas foram mortas, torturadas” eu responderia “mas quem eram essas pessoas? Elas não estavam querendo implantar o comunismo no Brasil e assim matar muito mais pessoas?” Pois eu já nasci dentro do ambiente democrático, só repetia a informação e argumentos que me foram passados.

E no meu caso, tinha um plus, eu tive palestra com pessoas que me disseram ter sido ameaçadas pela guerrilha, que perderam seus irmãos, por exemplo. Eu tinha relatos de pessoas que foram “perseguidas pelos comunistas.”

A narrativa é toda construída de forma a apresentar que “os militares somente nos protegeram de algo muito pior”.

Parte dos trabalhadores brasileiros da época vão dizer que nunca sentiram o Brasil como ditadura, quantas vezes você não ouviu “eu vivi esta época e posso dizer” pois de fato grande parte do povo estava preocupado em manter suas famílias, trabalhar e conseguir viver e sem envolvimento direto com a política, sem acesso à informação, não tiveram grandes alterações na sua vida.

E honestamente palavras e frases soltas as vezes não causam efeito pra fora da nossa bolha como, por exemplo, “Ditadura nunca mais”, isto não significa nada para alguém que não acredita que houve ditadura no Brasil, é preciso diálogo, conversa, paciência para que seja desconstruído muita coisa.

Não nego que existem pessoas realmente horríveis, más e que desprezam o valor da humanidade, que como disse o então deputado Bolsonaro conscientemente dizem que “A Ditadura deveria ter matado uns 30 mil, pelo menos”, ou que diante da morte de milhares diz “e daí, não posso fazer nada, não sou coveiro”, com certeza existem muitas, mas deve-se levar em consideração que no Brasil, de acordo com IBGE somente 48,8% da população concluiu o Ensino Básico completo.[1] Em que mais metade da população vive com menos de 420 reais por mês[2] menos de 15 reais por dia.

E o que mudou no meu caso? Demorou muito tempo, tiveram questionamentos, dúvidas, pesquisas, conversas, discussões para eu começar a entender algumas coisas como por exemplo, a gigantesca diferença que é a estratégia de perseguição do estado com toda sua máquina, informação, comunicação, armamento e bélica e qualquer tipo de tentativa de resistência.

Demorou tempo para eu entender que, naquele ambiente de guerra fria, diversas pessoas que defendia alguma seguridade social eram acusadas de socialistas e perseguidas por isso.[3]

Demorou tempo para eu entender que quem estava na costa Brasileira esperando para dar o golpe com a operação Brother Sam eram navios dos Estados Unidos e não da União Soviética. E isto esta assumido nos documentos públicos do governo estadunidense Foreign Relations of the United States, 1964–1968, Volume XXXI, South and Central America; Mexico — Office of the Historian[4] E que Jango nunca teve pretensões socialistas ou comunistas pro Brasil.

Também precisei entender que grande parte da mídia da época era controlada e censurada e que as informações de violência e repressão não chegavam até a grande massa da população que naquela época era basicamente jornal impresso, TV e Rádio.

O que aconteceu em 64 foi um golpe militar, com apoio dos Estados Unidos da América, Jango nunca teve pretensões comunistas para o Brasil, inclusive não havia nem meios para isto, o momento a seguir foi cruel e sombrio, a máquina do Estado estava disposta a perseguir e torturar pessoas que eram contrárias ao governo, a imprensa, as artes eram silenciadas e censuradas pelo governo, a liberdade foi cerceada pois o Brasil viveu de 1964 até 1985 uma ditadura.

Mas isto levou tempo, diálogo, paciência de amigos e amigas, pesquisa e muita informação. Uma sociedade educada vai poder dizer convictamente “Ditadura nunca mais” e lutar contra retrocessos, defendendo a vida e a dignidade humana.

Ditadura nunca mais!

Manoel Botelho

Integra a Rede Ecumênica de Juventude. Foi observador de Direitos Humanos nos Territórios Palestinos Ocupados e é professor nas áreas de política e filosofia.

http://www.institutomosaico.com.br/

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