Eu mito, tu divas e ela lacra

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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3 min readAug 15, 2017

Nas novas formas de expressão virtual, os significados são múltiplos — e os conteúdos, vazios

Fotografia: Vanessa Para, Milan, Itália. Tema: antiSOCIAL. Behance

Os filólogos, aqueles vetustos senhores que escolhem as palavras que encontramos nos dicionários, poderiam — aliás, deveriam — navegar pelas redes sociais. Se o fizessem, veriam o quão longe estão da, digamos, cultura nacional contemporânea. Nas timelines, twitteres e instagrans da vida, novos vocábulos surgem com uma rapidez impressionante, circulando à velocidade da luz pelos smartphones e espalhando novas e inusitadas expressões. Já é hora de incorporar ao vernáculo pátrio termos como lacrou, mitou e divou, para mencionar apenas alguns citados aos borbotões pela moçada plugada.

Como a Língua Portuguesa foi capaz de prescindir, nos últimos 900 anos, de palavras tão ricas em significados e interpretações? “Mitou”, por exemplo, vai muito além da simples referência a relatos fantásticos, personagens icônicos ou tradições heróicas que se incorporam ao imaginário coletivo de um povo. Dizer que “fulano mitou”, hoje, é um elogio daqueles, digno de heróis referenciais. Ivette Sangalo, por exemplo, vive mitando no Facebook, na TV, nas revistas de consultório e na propaganda do aniversário Guanabara — aquela rede de supermercados que faz aniversário todo mês. E o mais legal é que não apenas as celebridades mitam. Aqui na minha rua, o Bira, que tomava conta da guarita, sofreu um infarto fulminante, coitado. Pois, no dia seguinte, um vizinho homenageou o simpático porteiro na rede social com uma foto e a legenda: “Bira mitava no portão”. Deus o tenha.

O detalhe é que já não basta dizer que o Bira era bem eficiente em seu serviço ou que a Ivette é uma artista muito talentosa. “Eficiente” e “talentoso” são arcaísmos tão ultrapassados como os fardões da Academia. Ninguém mais brilha, por exemplo — o negócio, agora, é divar. Tenho umas 500 amigas no Facebook, e todas elas divam a cada selfie. O pessoal não se contém em clicar “divou!”; é preciso grafar “divooooooooooooooooooooou!”. Para além do mundinho de pobres mortais como nós, quem tem divado muito, ultimamente, é a Anitta, que canta Show das poderosas. Ela é um dos maiores exemplos de gente que diva. Saiu do anonimato com um videozinho na internet há pouco mais de seis anos e já faturou discos de platina, foi premiada pela MTV Latin America, indicada ao Grammy e já vendeu quase 500 mil cópias de Bang, seu quarto álbum. Um tiro!

E quanto ao lacrou? Quem consulta o Aurélio pode ser compelido a acreditar que lacrar significa, apenas, “aplicar um lacre”, “fechar” ou “selar”. Que nada. Lacrar, nesta segunda década do século 21, é deixar os outros sem fala; é calar a boca dos invejosos, inovar em termos comportamentais ou, simplesmente, ir de encontro a tudo-isso-que-está-aí. Pabblo Vittar, por exemplo, anda lacrando demais. Aos 22 anos, o artista drag queen foi alçado à posição de apóstolo LGBT graças às performances e declarações de arraso. Seu cachê gira na casa dos 50 mil reais e, até o fechamento destas mal traçadas, ele detinha 160 milhões de visualizações no YouTube. Ignorante, eu não sabia de sua existência até que fui devidamente informado por um colega de que Pabblo não apenas lacra como, também, é um artista empoderado cuja missão é desconstruir a homofobia da direita reacionária burguesa defensora da ultrapassada família tradicional e da falida moral judaico-cristã. Uma de suas estratégias na grandiosa cruzada, acho eu, é ser vadia todo dia. Pabblo já avisou, a quem quiser ouvir, que nem vai esperar o carnaval para vadiar. Não chega a ser novidade, pois a Clementina de Jesus já vadiava há um tempão. Só que nunca lacrou.

No vazio de conteúdos e raciocínios deste Febeapá*, mitar, divar e lacrar é o que resta.

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Carlos Fernandes tem 50 anos e é carioca. Jornalista, editor e redator, passou vinte anos na direção das revistas de informação cristã Vinde/Eclésia e Cristianismo Hoje. Hoje, trabalha no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e faz produção editorial e preparação de textos para diversas editoras.

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