O bom samba é uma forma de oração

Valdemar Figueredo
Instituto Mosaico
Published in
3 min readAug 12, 2017

Sobre gente que vence a vida com fé em Deus e o embalo da cadência da bateria.

Império Serrano — Museu Virtual

Primavera no Rio de Janeiro, mas o calor já nos dava a sensação do verão mais intenso. Dia de visita domiciliar, hora de subir as ruelas e descobrir as cidades escondidas e mascaradas, que em nada se parecem com as maravilhas tão aclamadas nos versos de bossa nova midiáticos, dos quais sou um fã assumido. Tão somente, mais uma sexta-feira na clínica da família do Complexo do Alemão.

Dizem que a vida é uma caixinha de surpresas, e é mesmo. E foi numa dessas visitas que eu conheci a mangueirense mais linda que já vi. Dona hosana já estava na casa dos oitenta e poucos anos, o samba já não estava nos pés devido à sua artrose avançada, mas certamente o ritmo ainda embalava o seu coração. E é com um sorriso no rosto que ela nos recebeu para uma consulta médica em casa.

Logo ao entrarmos no local, que era humilde, porém muito bem arrumado, um fato inusitado ocorreu. Não mencionei antes, mas, além do quadro articular, dona hosana adquirira com os anos sérios problemas nos olhos que acabaram levando a uma cegueira bilateral. Quando foi cumprimentar uma das estudantes que nos acompanhava, um estetoscópio que estava guardado no bolso do jaleco causou a impressão de ser uma arma de fogo, gerando um susto na nossa paciente, tão acostumada a ambientes em que este segundo objeto é mais comum do que o primeiro. Após as devidas explicações, tudo passou a fluir normalmente.

O intuito desse texto não é discorrer sobre as queixas clínicas que foram apresentadas nesse dia ou aspectos específicos do acompanhamento de pessoas idosas. Vamos falar um pouco sobre o samba. Como disse no início, estávamos na casa de alguém que tinha uma escola do coração aqui no Rio. Dona hosana já foi cozinheira na Estação Primeira de Mangueira, por vezes desfilou como passista e fez parte da bateria. Nos contava com entusiasmo que quando mais jovem não perdia um ensaio. E depois, quando já não podia estar tão presente, pelo menos comparecia fielmente à Sapucaí para assistir aos desfiles. Agora nos últimos anos, o que restava era a transmissão televisiva, mas não tinha problema. A paixão era tamanha, que em sua mão esquerda carregava um anel com uma dita esmeralda, representando uma das cores da escola e que havia ganhado por sua dedicação à ela.

Dona Iguaraci, sua filha, nos falava de como a vida da mãe tinha sido difícil. Lutou para sustentar os filhos sem a ajuda do pai. Trabalhou nas mais diversas funções, e, agora no fim da vida, apresentava o drama de estar longe de muitos familiares queridos. As histórias me lembravam da letra de Vinicius de Moraes, aquela que diz que pra fazer um bom samba é preciso um bocado de tristeza… já tinha dito que sou fã. E nunca essa poesia me pareceu tão real. A vida da dona Hosana com certeza daria um ótimo enredo. Parei pra pensar em tantas injustiças que ela tinha vivido.

Ela jurava que o que a manteve firme foi sua fé em Deus e o embalo da cadência da bateria.

Essa foi uma experiência que me fez perceber como um laço com a cultura pode fazer diferença na vida de alguém. Nietzsche dizia que não acreditava em um Deus que não soubesse dançar. Desde o dia que conheci dona Hosana, penso que Deus deve saber sambar. Em junho desse ano, ela foi se encontrar com Ele. Tenho certeza que a festa lá em cima foi das boas!

Gustavo Santiago. Médico residente em Medicina de Família e Comunidade. Músico nas horas vagas. Capixaba se aventurando no Rio de Janeiro

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