“EU SOU A PORTA…”

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readJan 15, 2020

Por Eduardo Campos

Foto: pxhere

O sagrado desperta em nós uma atitude solene; o solene é uma atmosfera de reverência; a reverência inspira seriedade; a seriedade é o desvelo da Verdade. Mas, ironicamente, tudo isso pode ser mantido mesmo numa postura às avessas. Isso significa que a irreverência, por ex., pode guardar a mais sublime reverência; o equívoco teológico, a mais profunda Verdade. É assim que, do panteão da Verdade, as aparências sempre enganam o dogmático.

Nesse mundo às avessas e de ambiguidades, Verdade possui dois filhos: Riso e Choro. Este costuma ser fiel às heranças da mãe, mas, muitas vezes, é Riso que faz isso da melhor forma. Alguns de seus herdeiros contemporâneos, como os da produtora “Porta dos fundos”, conhecem bem as provocações do Riso, e é sob a sua divina inspiração que honram com grandeza as loucuras da mãe.

Os esquetes do grupo “Porta dos fundos” são amplamente conhecidos. Apesar de curtos, Riso aparece neles provocando uma espantosa alegria, porque acessa em nós uma região do Medo que é de difícil penetração. A Graça do Riso, como o Amor, lança fora o Medo e nos suspende no instante de uma extraordinária duração — que dura como dura a Liberdade. Esse tal Medo até parece reverência, porém nada tem a ver com o Temor genuíno de uma reverência sagrada, pois o primeiro é apenas tolhimento, mas o segundo é um respeito que constrange e liberta. Na atmosfera desse respeito, Riso apossa-se do grupo para destilar irreverências contra o Medo. Contra o encarceramento do Medo, age um Riso libertador. Só Riso é capaz dessa façanha, pois uma reverência está subguiando a sua irreverência

Nos dias de hoje, “Fora do Riso não há salvação”, e, do cotidiano à política, nada escapa à risada do deus. Nada — nem mesmo os próprios integrantes do grupo devem escapar de sua gostosa risada. Pois não é o grupo nem a política que devem determinar os limites do humor: é Graça que, se realmente for séria, diz até onde Riso pode ir.

Mas façamos justiça: Choro também é importante nesse panteão de emoções da deusa Verdade. Que faz Choro? Choro serve, sobretudo, à compaixão; mas Riso serve principalmente à liberdade. Se Choro traz o vínculo imediato da compaixão, Riso, por sua vez, sem Piedade, irrompe em gargalhada, rompendo com os costumes viciados do cotidiano. Essas rupturas com os “bons” costumes, é claro, geram dor. Mas não existe melhor arma que a força de Riso. Quando Ira se estrebucha de raiva, Riso apenas contrai sutil e involuntariamente o canto da boca, dizendo em ritual: “Vade retro, Medo!”. Não é à toa que Nietzsche afirma: “Não com ira, mas com riso, mata-se”. Para matar, Riso precisa ser incompassivo, contudo, esse é o seu modo de ser mais pio. Pois não é por mero deleite sádico que faz isso. Não. No fundo, no fundo, do outro lado do átrio, o seu Erê guarda jovialmente a contraface da velha seriedade, com a qual dignifica a mãe Verdade, velando sua herança com a devida irreverência.

O humor, apesar de não ter seus limites dados pela política nem pela religião, possui uma medida dada pela própria Graça. O Riso só perde em graciosidade quando perde em seriedade. Riso, sem seriedade, é galhofa, pura zombaria, risadaria de orgulhoso, vaidoso, mesquinho — e não mata ninguém, não liberta ninguém, no máximo distrai as gentes do tédio de existir. A grandeza de Riso é obedecer com devoção à mãe, matando com justa medida o cancro que vampiriza a vida sem Graça. Porque o Medo não quer matar, mas apenas deixar a vida cada vez mais exangue. No matar do Medo o que mais mata não é a morte em si, mas a ameaça da morte, o próprio ameaçar. Por isso, atualmente, Medo não deseja matar, pois a morte apenas extinguiria sua delícia ameaçante. A ameaça é mais requintada: com ela não se suja as mãos. Medo escaldado não pega mais em palmatória, apenas aponta para ela.

Neste ano que se inicia, esperamos que o grupo “Porta dos fundos” jamais perca a reverência do Riso, para que assim o Medo possa perder a sua.

Eduardo Campos. Doutor em Filosofia (UFRJ), Mestre em Filosofia (UFRJ), Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ), Licenciado em Filosofia (UFRJ). Atua como pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ). Professor do Instituto de Psicologia Fenomenologico-Existencial (IFEN).

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