“EXISTE UMA FLOR… EU CREIO QUE ELA ME CATIVOU…”

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readDec 9, 2017

Fiel à letra ainda que isso signifique trair o espírito que o anima?

Ilustração: Renan Gomes Moraes

Este texto quer ser um elogio à traição — não a uma traição qualquer, mas a toda traição que engana por amor à verdade, por amor ao que silencia na língua, por amor ao que se esconde na pureza do coração, na transparência invisível de todo visível.

Uma conhecida raposa sabia bem disso quando revelou seu “segredo”: “…só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos”.

Quando falta o coração sobra apenas o cérebro engomadinho, empolado e tacanho da moral. Este elogio à traição é destinado especialmente aos tradutores que buscam a precisão no traduzir, como, por exemplo, o caso daqueles especialistas no vernáculo francês que criticam as traduções brasileiras d’O Pequeno Príncipe, sobretudo, no tocante a última palavra (“cativou”) da passagem da obra de Saint Exupéry que intitula este texto.

Quase todos os tradutores sofrem do mal de Bentinho: “Conhecia as regras do escrever sem suspeitar as do amar; tinha orgias em latim, e era virgem de mulheres”. Mas todo tradutor é um traidor: “Traduttore, Traditore”.

Mas a grande ironia que pesa sobre o tradutor contemporâneo é justamente não poder trair. Ele precisa ser fiel à letra ainda que isso signifique trair o espírito que o anima. Ele é bem-intencionado, mas, talvez, com sua boa intenção de marido ilibado, perca o fio da sedução que o convida ao desvio necessário para a vitalidade da tradução.

Em O Pequeno Príncipe de Saint Exupéry paira uma questão (um deslize!) acerca da tradução de apprivoiser para a língua portuguesa. Tanto a antiga tradução de Dom Marcos Barbosa quanto a tradução mais recente de Ferreira Gullar atenderam ao apelo do livro quando foram seduzidos pela sua totalidade, quer dizer, não se restringiram à palavra francesa tomada isoladamente. Em vez de traduzirem apprivoiser por “domesticar, amansar, aprisionar”, preferiram o verbo “cativar”.

A tradução brasileira diz assim: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”, mas para ser mais precisa e fiel ao dicionário talvez devesse traduzir: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que domesticas”.

É sofrível, soa mal! Mas, por outro lado, se existe em francês a palavra captiver (“cativar”), por que Saint Exupéry usa apprivoiser? Entretanto, aqui não importa analisar o “por quê”, mas sim o belo sentido que atravessa a palavra cativar — tão bela é a palavra que até seduziu os tradutores para si. Afinal, eles viram o invisível — e traíram!

Cativar tem um sentido duplo: pode ser entendido como deixar alguém privado de sua liberdade, na prisão, i.e., em cativeiro; ou então ser entendido com o sentido de arrebatar, tomar, seduzir, i.e., ser cativado. Essa dupla perspectiva aparece, sobretudo, nas relações amorosas. Há, por exemplo, aquela que mantém o outro preso por coação, domando-o, controlando-o em cativeiro; e aquela que mantém o outro tomado, enlevado e cativado no próprio coração que se entrega livremente mediante o arroubo.

Ambos são cativeiros, porém, o primeiro exerce o cativar por força de contenção; o segundo, por atração. No cativeiro da contenção, o outro é mantido sob a força da não-liberdade, e, com o passar dos anos, não há nada mais dorido! No cativeiro da atração, o outro é seduzido para um cativeiro com porta e tranca, mas com as chaves voltadas para o interior do cativeiro, pois como diria Camões em seu belo soneto sobre o amor: “É querer estar preso por vontade”. O dono desse cativeiro jamais domestica, mas cativa como quem seduz no amor! E aqui aparece paradoxo do amor, a saber, poder ser livre em um doce cativeiro; e só quem exerce o fascínio de cativar na liberdade pode então acolher dadivosamente o imperativo que dela decorre: “Tu te tornas eternamente responsável pelo que cativas”.

Cativar por atração é “criar laços” que permitam, vez ou outra, um desenlace, porque somente assim um novo enlace poderá acontecer. Cativar por contenção é o horror de um nó bem firme, cuja perene força pode tornar-se a decente forca de um enlace matrimonial. Todo tradutor-empolado quer o rigor desse nó; só o tradutor-traidor quer o descaminho do desenlace que recria o caminho para um novo laço.

Eduardo Campos. Doutor em Filosofia (UFRJ), Mestre em Filosofia (UFRJ), Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ), Licenciado em Filosofia (UFRJ). Atua como pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ). Professor do Instituto de Psicologia Fenomenologico-Existencial (IFEN).

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