Feminismo e religião

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readAug 4, 2017

Como se mobilizar contra violências naturalizadas

Quando pensamos em ativismo social, lembramos de iniciativas de acordo com nossas vivências sociais, raramente de uma pessoa sozinha. Creio que o ativismo social não é algo que se faz isoladamente, mas com grupos de tamanhos diversos reunidos para trabalhar em prol da solução de problemas que tocam histórias de vida. Esses problemas podem estar ligados a educação, manutenção de cultura, acesso a direitos básicos, igualdade social e econômica, e tantos outros temas que os cidadãos achem necessários e que os mobilizem. Tais grupos são a sociedade civil organizada e podem se mostrar em movimentos grandes e consolidados ou em coletivos, núcleos de apoio social de igrejas, associações comunitárias e até cooperativas. Outra forma de ativismo é a participação em conselhos e auditorias populares de saúde, educação, moradia e etc.

Em busca de uma abordagem mais geral, poderíamos passear por aspectos conceituais e também alguns mais práticos do engajamento. No entanto, neste texto, eu gostaria de tratar da minha linha principal de trabalho: a intersecção entre o feminismo e a religião, em especial as cristãs. Quero contar um pouco da experiência do coletivo de feministas cristãs do qual faço parte em Brasília. Para caminharmos em um terreno comum, embora esta temática tenha âmbito prático, muita reflexão é necessária. Para iniciar um diálogo sobre o feminismo, precisamos alguma ambientação.

Proponho responder brevemente três questões e descrever como surgiu nosso coletivo.

  1. O que é feminismo? Eu o entendo como o conjunto dos movimentos de mulheres que buscam a emancipação da dominação socioeconômica, jurídica, de produção intelectual e da tutela ideológica de homens sobre as mulheres.
  2. Como percebemos tais dominações e tutela? Elas se manifestam visivelmente na violência física, material e sexual, e na divisão de espaço e de trabalho, mas também na violência simbólica e psicológica. O maior problema em perceber tais formas de violência é que elas estão socialmente naturalizadas. Pouco se questiona a ausência ou pouca presença de mulheres em postos de liderança, autoridade e geração de conhecimento, dentro e fora das instituições de vinculação religiosa. Parece natural a mulher estar em casa ou fazer uma dupla ou tripla jornada de trabalho, estar submissa a autoridades masculinas e ter um salário inferior para executar as mesmas tarefas. Mas, nada disso é simplesmente natural, temos uma desigualdade construída que atinge cerca de metade dos seres humanos. Ela ainda se soma a outras formas de exclusão como pobreza, racismo e outros preconceitos.
  3. Como se traduz a insatisfação por essas condições em ativismo social? Através da reunião de mulheres como sociedade organizada, seja em grupos locais ou territorialmente amplos, na forma de coletivos, conselhos, associações, que movem ações em diversos âmbitos — culturais, produtivos, legislativos, educacionais, de amparo social ou na busca de recursos governamentais — para proteger mulheres de situações de violência e buscar igualdade de direitos e condições com os homens do seu ambiente de convivência. Esses movimentos tentam mudar a vivência social injusta nas relações interpessoais, construir novas maneiras de pensar essas relações e, com isso, modificar normas sociais explícitas, na forma de leis ou ordenanças, ou implícitas, na forma de violência simbólica.

Eu vejo que são essas as intenções do nosso coletivo, que denominamos Caliandras (caliandra é uma flor do cerrado que se destaca em meio a paisagem seca). Inspiradas em outros movimentos de mulheres, como o coletivo ‘Vozes Marias’, o blog ‘Agora é que são Elas’ e o grupo ‘Feministas Cristãs’ no Facebook, algumas mulheres que moram no DF, de experiências cristãs diversas e até não-cristãs, incomodadas com discursos públicos contra o feminismo, proferidos por líderes de igrejas evangélicas, começaram a se encontrar para conversar sobre ações mais práticas e o apoio que poderiam dar a mulheres evangélicas que sofrem de violências diversas. Mobilizamos o grupo para apoiar umas às outras e saber de mulheres em problemas que possamos ajudar.

Algumas acompanham um trabalho com mulheres na comunidade carente de Santa Luzia, na Estrutural, uma zona bem pobre do DF. Ali, apoiando algumas mulheres em suas necessidades imediatas, conseguiram uma liderança local que periodicamente faz reuniões de mulheres na qual se discutem os problemas locais, redes de apoio e formação profissional. Também promovemos encontros periódicos de leituras e discussão de temáticas envolvendo feminismo, religião e educação em rodas de conversa abertas. A cada encontro crescemos em número, na partilha de conhecimento e experiências e na reflexão sobre nossos papéis e atos na sociedade. Cremos que, juntas, fazemos diferença.

Carolina Bezerra de Souza | Brasiliense, com metade do coração em Recife e um pé em Curitiba. Doutoranda em Ciências da Religião, mestra em Ciências da Religião, bacharel em teologia e engenheira eletricista. Trabalha as temáticas de gênero, textos sagrados, movimentos populares e espiritualidade.

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