Igreja deformada, sempre se superar

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
Published in
4 min readNov 6, 2017

500 anos da Reforma Protestante

Foto: Flavio Silva

Diante da aurora positiva que embriagou das festividades dos 500 anos da Reforma Luterana, comemorada no dia 31 de outubro de 2017, muito se disse sobre o valoroso evento. No entanto, convém sair um pouco do espírito utópico-carnavalesco que tomou conta das festividades e olhar mais crítico nas igrejas/memória que se tem no Brasil. Antes de qualquer comemoração, acredito ser importante lembradas as práticas de violências, do racismo, da xenofobia e da homofobia que levam sua grande maioria de igrejas que, no hoje, afirmam-se no espectro da Reforma. Suas violências fundamentalistas e extrermismos alastram centenas de vítimas das demais religiões (principalmente as afro) e nas grandes cidades, seus templos anestesiam ainda mais os clamores dos pobres. Por isso, como teólogo submerso nessa tradição protestante-evangélico brasileira, levantei abaixo vinte elementos anti-democráticos que mereceriam ao menos ser pensados no meio de tão glamorosa festividade. Assim, destaco que:

Em 500 anos da Reforma, não se fez uma igreja qualquer!

1. Em 500 anos da Reforma, não se fez uma igreja que não estivesse 100% preocupada com suas doutrinas;

2. Em 500 anos da Reforma, não se construiu uma igreja que pedisse perdão pelo massacre, em conjunto com os governantes, das vítimas das Revoltas Camponesas no âmbito das Reformas dos seiscentos;

3. Em 500 anos da Reforma, não se fez preocupada com os “pequeninos do Reino”, mas sempre com a individualização desarticuladora da fé;

4. Em 500 anos da Reforma, não se faz uma igreja que lute pela igualdade de gênero em todas as esferas;

5. Em 500 anos da Reforma, não se fez nenhuma igreja sem preocupação com o estado e/ou estados nacionais. Ao contrário, o que se percebe são igrejas que se aliam aos governantes e às elites;

6. Em 500 anos da Reforma, não se fez qualquer igreja sem preocupação com os dízimos, ofertas, cartões e cheques no geral;

7. Em 500 anos da Reforma, não se fez qualquer igreja cuja liderança não se preocupasse em se auto-proclamar ante aos seus consumidores de fé;

8. Em 500 anos da Reforma, não se fez qualquer igreja preocupada com os que sofrem perseguição de Estados, Impérios, como fora morto o próprio Jesus, em crucificação pelos romanos;

9. Em 500 anos da Reforma, não se fez qualquer igreja preocupada- seja no Brasil, ou na America Latina ou na Europa- com a crítica aos massacres nas colônias contra os povos dos continentes americano, africano e asiático;

10. Em 500 anos da Reforma, não se fez uma igreja preocupada com a questão da moradia, que obriga milhares de pessoas a acampar na luta pelas Reformas Agrária e Urbana;

11. Em 500 anos da Reforma, não se fez uma igreja realmente preocupada com os moradores de rua;

12. Em 500 anos da Reforma, não se fez uma igreja realmente preocupada com nossa população carcerária, sem interesse evangelístico;

13. Em 500 anos da Reforma, não se vê uma igreja preocupada com a morte de Amarildo (presente!) e outros/outras vitimas das UPPs no Rio de Janeiro;

14. Em 500 anos da Reforma, não se vê uma igreja preocupada com a carceragem e a situação de Rafael Braga (entre nós!);

15. Em 500 anos da Reforma, não se vê uma igreja em promover a memória de Cícero Guedes (presente!), Regina dos Santos (presente!) e outros (presente! presente! presente!), vítimas do latifúndio escravocrata brasileiro;

16. Em 500 anos da Reforma, não se produziu uma igreja realmente preocupada com o a violência contra a mulher e engajada contra o feminicídio;

17. Em 500 anos da Reforma, não se inventou uma igreja realmente preocupada em acolher integralmente a comunidade LBLTQI;

18. Em 500 anos da Reforma, não se testemunhou uma igreja preocupada com a crítica do Capital e do imperialismo;

19. Em 500 anos da Reforma, não se fez uma igreja que fez autocrítica dos racismos cometidos contra, negros, negras, índios e índias;

20. Em 500 anos da Reforma, não se construiu uma igreja que não se fale de missão e evangelização, chamariz indecoroso de justificativas imperialistas e colonizadoras;

Por tudo isso, em 500 anos da Reforma, infelizmente, não se desenvolveu uma igreja profundamente ligada ao rito democrático. Uma Reforma que tivesse como verdadeira “missão” a luta contínua por justiça sem qualquer vínculo com os aparatos jurídicos e governamentais. Agora, no contexto das comemorações pelos 500 anos da Reforma, escutei alguns entusiastas citando o dito do teólogo Gilbertus Voet, ao arvorarem por uma “Igreja reformada sempre se reformando” (“Ecclesia Reformata et Semper Reformada est”). Quando ouvi a citação fui tomado de um arrepio completo. Sim, porque me lembrei das violências recentes contra os terreiros e do Histórico vínculo das igrejas com as Ditaduras na América Latina. Ocorre que eu, todo protestante, queria algo mais. Sim, (até) reconheço que Reforma Luterana “funcionou” muito bem ao ajustar-se ao Antigo-Regime em favor dos governantes, das elites, das burguesias e de seus cleros — por definição, imundos. Assim, por tudo, creio que uma Reforma seja muito pouco. O que se quer não se tem nome. Por isso, o pedido, só por hoje… sem quaisquer citações às Reformas.

Fabio Py Murta de Almeida. Colunista do site Caros Amigos de temas de Religião, diálogo inter-religioso, história da igreja e história das religiões. Membro da CPT-Rio e do coletivo Vanda-Lize. Doutor em Teologia pela PUC-RIO, ênfase Fé e Política. Professor convidado do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).

--

--