LETRAMENTOS PERIFÉRICOS: O JESUS NEGRO DOS RACIONAIS MC’S

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
Published in
9 min readSep 12, 2019

Por Bruno Rocha

Considerado o maior grupo de rap do país, desde 1988 Racionais Mc’s escreve o seu nome na história brasileira. Sua representatividade junto à militância em diversas décadas, sua “voz ativa” no combate aos desmandos do estado bem como sua denúncia contundente sobre o racismo estrutural, continuam mais vivos do que nunca. A mais recente notícia repercutida na mídia em relação ao grupo foi o lançamento do livro “Sobrevivendo no Inferno”, pela editora Companhia das Letras, que reúne as músicas do álbum de mesmo nome lançado em 1997. Além de colocar o rap em um novo tipo de plataforma, discussão e de reconhecimento literário — mesmo que nas palavras de Emicida o rap reivindique autoridade intelectual à música de rua, “nossos livros de histórias foram discos” — essa publicação foi responsável por colocar o rap e a cultura popular mais uma vez em debate ao ser anunciado pela Unicamp que a obra estaria incluída na lista das leituras obrigatórias para a realização do vestibular da instituição, preconizando algo inédito e de grande impacto na educação pública brasileira.

Toda polêmica gerada em torno desse episódio se relaciona às dimensões políticas e ideológicas que direcionam o desenvolvimento do país e que deixam claro quais narrativas (ideologias) estão autorizadas à influenciar aspectos da formação cultural, econômica e cidadã da população. Falar de letramento e oralidade periférica, principalmente das que fogem à educação formal, seus dogmas e estéticas conservadoras, é literalmente, como diz Djonga, “roubar o patrimônio do cuzão”, é dar “voadora na cultura branca”, reivindicando às classes periféricas e negras o direito de ver, mesmo que em pequena parcela, sua cultura representada. Além, é claro, de oportunizar o alargamento democrático dos saberes acadêmicos em relação ao acesso universitário e quem domina os conteúdos necessários para ter acesso à educação universitária pública.

A pesquisadora Ana Lúcia Silva Souza (UFBA) em seu livro “Letramentos de Reexistência: poesia, grafite, música dança: hip-hop”, cunhou um termo chamado “letramentos de reexistência”. Esse conceito se aplica a grupos e sujeitos que produzem letramentos (formas de escrever) a partir de suas próprias realidades. Souza entende que todo letramento é produzido a partir de um conjunto de fatores sociais, ideológicos e políticos que influenciam em utilizações não pedagogizadas da linguagem e escrita, considerando, assim, o movimento hip-hop (rap) uma agência de letramento própria. A experiência em educação de grupos informais e marginalizados reinventa “os usos sociais da linguagem” em uma tentativa diária de sobrevivência por meio da apropriação e instrumentalização dessa língua/linguagem, tornando-se potência em suas variadas formas e usos. Resumindo, para além das habilidades de ler e escrever, os “letramentos de reexistência” são as múltiplas formas de expressão em letramentos, em variados contextos, em diversas finalidades de relações de construção e identidades.

Junto ao entendimento de que falar de letramento é falar sobre a presença e o pertencimento que se dá em sociedade, a religião se apresenta como preambulo do rap. Não apenas historicamente quando se pensa o cruzamento, a diáspora e a hibridização de diversas culturas negras que se encontram no bairro do Bronx (hispanos, jamaicanos e norte-americanos) na década de 1970, mas porque em todas essas culturas o fenômeno religioso se faz presente sendo encarnado pela linguagem e oralidade, junto a utilização de elementos sagrados próprios de cada tradição em tudo aquilo que se produz: comunidade, saberes e cultura. A religião emerge no rap como agência de sentido inerente as construções das linguagens e expressões culturais, que através das tradições musicais religiosas africanas e cristãs norte-americanas (spiritual, gospel, soul etc), se ligam ao solo periférico onde o rap se constrói, estabelecendo-se aos poucos como ferramenta de luta social a partir de um discurso político/religioso contundente, como o famoso cantor formado no meio evangélico, James Brown, que em sua canção “Say it loud: I’m black and proud”, de 1968, pede para a população negra: “Diga alto: Sou preto e tenho orgulho disso’.

Pensar a trajetória do grupo Racionais Mc’s, é pensar a história dos negros e negras no Brasil e todo os efeitos devastadores advindos do processo de escravidão/colonização. Para a nossa reflexão, se faz oportuno observar aquilo que tange aos modos “sócio-culturais de usar a leitura, a escrita e a oralidade, bem como aos sentidos dessas práticas para brancos e negros, mesmo tanto tempo após a escravatura”. Percebe-se então que, o que se disputa na “aceitação” ou não do livro “Sobrevivendo no inferno”, é o fato de uma obra literária negra e periférica ser reconhecida como um letramento possível e autorizado dentro de uma instituição formal de ensino, e que servirá como “prova” para “medir” os conhecimentos necessários para a seleção de uma maioria branca que acessa a universidade pública, revelando ser esse mais um caso de racismo histórico/institucional que acomete históricamente a população negra do Brasil.

Souza diz: “Sem o domínio do lugar de produção linguística, a palavra também escravizada é transformada não apenas em silêncio, ‘mas na ausência da palavra, da palavra enquanto criação ideológica’”. Parafraseando a professora Ana Lúcia, a população negra buscou e busca educar-se em meio a negociações e subversões, a dribles de uma série de mecanismos “invisíveis” de interdições em meio a um cenário político desfavorável, que prioriza o acesso escolar do branco/europeu via escola/instituição branca/europeia sempre a partir de práticas de letramento mais próximas das concepções ideológicas e estéticas europeias, que estão em lugar de legitimidade, “em detrimento da oralidade e saberes autogerados e vernaculares das populações indígenas e negras” do Brasil.

Mano Brown, mesmo sem ter terminado o processo de escolarização formal — “Problema com escola eu tenho mil/Mil fita” — entende tacitamente os processos políticos e ideológicos ligados ao letramento, reexiste à exclusão institucional do ensino, e passa a deter, se apropriar e produzir conhecimentos múltiplos a partir de seu lugar de fala negra e periférica:

“Do que vale a negritude, se não pô-la em prática?/A principal tática, herança de nossa/Mãe África/A única coisa que não puderam roubar/Se soubessem o valor que a nossa raça tem/Tingiam a palma da mão pra ser escura também (…) Quero nos devolver o valor, que a outra raça tirou/Esse é meu ponto de vista, não sou racista, morô?/Escravizaram sua mente e muitos da nossa gente/Mas você, infelizmente, sequer demonstra interesse em se libertar/Essa é a questão: auto-valorização/Esse é o título da nossa revolução” (Júri racional, 1993).

Nesse emaranhado de ideias políticas, o imaginário periférico de Racionais Mc’s também é atravessado pela religião, que não deixa de carregar inúmeras possibilidades de significados, sendo desde a memória política do pastor Martin Luther King Jr., lembrado em algumas canções do grupo pela sua importância na luta pelos direitos do povo negro, ou pelo fato da religião cristã, a partir de suas várias tradições, se fixar nos territórios predominantemente negros (favelas), principalmente a partir do final dos anos 1970 junto a expansão do movimento evangélico no país. Assim, constata-se que o rap sempre dialogou com as tradições religiosas direta ou indiretamente, compreendendo que a religião é algo inerente à formação do povo brasileiro, tendo o cristianismo e as religiões de matriz afro-brasileiras (aqui se misturam às espiritualidade xamânicas-indígenas) como fator de experiência de formação sócio-religiosa do país, se estendendo à todos os sujeitos advindos desse processo colonial, inclusive aos MC’s, suscitando a possibilidade de desenvolver críticas, reflexões, comportamentos, cultura e política à partir dessas múltiplas experiências com a religião.

Nos letramentos religiosos desenvolvidos no rap, a dupla Thaide e Dj Hum é pioneira. Na primeira coletânea de rap com maior alcance nacional em 1988, o Mc abre o disco com a faixa “Corpo fechado”, misturando um discurso político e provocador com referências à uma experiência religiosa no candomblé:

“Os demônios me protegem e os deuses também/Ogum, Iemanjá e outros santos ao além”.

Depois, em seu disco solo “Pergunte a quem conhece”, de 1989, a música “Eu tive um sonho”, narra a história de um dançarino de break que chega ao céu e agita o ambiente cantando e dançando break com os seres divinos:

“Os Anjos gritaram: queremos Break violento/Estão dançando e já estão bons,/Mas agora no céu todos fazem break de chão estão rodando de costas ainda estão em treinamento/E mais esperto é Deus que já faz moinho de vento/Vou dizer uma coisa como se fosse piadinha:/Ele me mostrou uma foto com Jesus de escovinha”.

Racionais Mc’s se soma a uma tradição no rap nacional que produz rap de discurso político atravessado pelo fenômeno religioso. “Jesus chorou”, “Capítulo 4, versículo 3”, “Na fé firmão”, “Gênesis”, além do álbum “Sobrevivendo ao inferno”, indicam a proximidade do grupo com a religião cristã, mas não só. Na música “Formula mágica da paz”, Mano Brown agradece a Deus e aos Orixás a oportunidade de ainda estar vivo, além de em um entrevista para o Red Bull Music Academy Festival São Paulo, narrar o dia em que o grupo de rap foi pedir proteção e acender algumas velas em uma encruzilhada no alto de um morro, revelando uma proximidade com um catolicismo sincrético e popular.

Essa fé que se manifesta nas letras do grupo Racionais tem características próprias de um contexto de letramento periférico. Eles se apropriam dos fenômenos religiosos, a partir do seu lugar social e racial, e fazem uso das palavras e símbolos religiosos a partir de seus corpos negros e oralidade ancestral, dando novos significados às figuras sagradas ante o contexto político injusto brasileiro, como é o caso da música “Capitulo 4, versículo 3”, onde se ouve:

“E a profecia se fez como previsto/1997 depois de Cristo/A fúria negra ressuscita outra vez/Racionais Capítulo 4, Versículo 3”.

Primeiramente, é interessante perceber como Mano Brown pretende dar ao grupo uma conotação e autoridade religiosa, sagrada, divina, colocando Racionais Mc’s simbolicamente ao lado dos livros considerados sagrados para as tradições religiosas, além de ser uma provocação aos teólogos pois, estão também disputando entre os livros que compõe o canon bíblico com a legitimidade de serem “palavra de Deus”. Racionais seria mais um livro divinamente inspirado que relata a vida de um povo oprimido em busca de libertação, mas que agora viria do Brasil, do Capão Redondo. Outro elemento usado na frase é a palavra “profecia”, que designa um exercício de denúncia, o que o teólogo Milton Schwantes diz “feito portador de um recado, de uma mensagem”, sendo a palavra, assim como entre os griots, “o veículo predileto da profecia”. Ou seja, Racionais Mc’s, são os profetas modernos (favelados) portadores do cumprimento divino de que a “profecia negra” (Jesus) ressuscitaria outra vez, dando a entender que o profeta negro (Jesus) que ressuscita novamente, se encotra a partir do corpo e da palavra do rap de Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e Kl Jay.

Para Mano Brown Jesus é negro como todos os integrantes do grupo o são. Ele diz na faixa final do primeiro disco (1993) dos Racionais Mc’s:

“Eu acredito na palavra de um homem de pele escura, de cabelo crespo, que andava entre mendigos e leprosos, pregando a igualdade. Um homem chamado Jesus. Só ele sabe a minha hora. Aí ladrão, tô saindo fora. Paz”.

Essa afirmativa vai de encontro aos teólogos negros da libertação, do qual Martin Luther King Jr. fazia parte, que dizem que é necessário repensar a tradição cristã a partir de um recorte racial, histórico e social onde se afirma a negritude e o lugar periférico de Jesus. Essa afirmação de Mano Brown ecoa em outros Mc’s que continuam encontrando em Jesus, ou em outras religiões, um lugar político e contestatório próprio de um estilo de “profetismo” do rap:

“Olhei no espelho e encontrei Jesus, preto/Tipo Auto Da Compadecida” (Djonga), “Meu precioso, Jesus era anarquista/Num era racista, jogado na pista” (Hot e Oreia), “Brooklyn, o que será de ti?/ Regar a paz, eu vim/Jesus já foi assim” (Sabotage), “Enquanto servirmos o faraó, nunca sairemos do Egito” (Síntese), “Só quem driblou a morte pela Norte saca/Que nunca foi sorte sempre foi Exú” (Emicida), “Deus é todo mundo sorrindo ao mesmo tempo” (ParteUm) etc.

Para ser escritor, leitor, estudante ou religioso em um “processo em que a palavra escrita é europeia” e branca assim como a religião, é preciso afirmar um letramento que seja negro e periférico, além de visibilizar religiões e sincretismos negros.

“Axé pra quem é de axé/pra chegar bem vilão/independente da sua fé/música é nossa religião” (Emicida)

Bruno Rocha

Palhaço, professor e pastor. Formou-se em bacharel em Teologia (FTBSP) e atualmente cursa Teatro (IFF). Seus temas de reflexão são: arte, educação, teologia da libertação e palhaçaria.

www.institutomosaico.com.br

--

--