LGBTQs

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
Published in
5 min readAug 31, 2017

Religiosidade inquisitorial e a graça que ainda não conhecemos

Foto: André Gomes de Melo. Flickr

Recentemente eu li num sítio de um importante segmento religioso o seguinte texto: “Lilia Marianno é uma das mais entusiastas defensoras da inclusão de LGBTQs nas igrejas. Ela tem pregado e feito palestras em várias igrejas tradicionais e em seminários ao mesmo tempo que “ministra” nas igrejas inclusivas, tais como Cidade de Refúgio”, das pastoras Lanna Holder e cantora Rosania Rocha, ambas casadas. Lília também divulga e ministra no Festival Reimaginar. Lembro que recentemente Lília tem agenda para lançamento de livros em várias igrejas batistas da CBB. Imagino que os pastores não devam estar informados sobre suas convicções”.

Confesso que fiquei surpresa com a certeza do autor deste texto em me descrever de uma forma que não me representa, mas na convicção dele está consolidado. Isso iria gerar uma enorme discussão sobre “a verdade a partir de quem” que não tenho intenção de abrir. Não sei se, ser uma pregadora contra a exclusão é o mesmo que ser entusiasta da inclusão. Então nem me darei ao trabalho de dissecar este texto aqui, estou escrevendo uma réplica, sem pressa, que publicarei no meu blog pessoal quando tiver condição.

Quero tecer esta minha primeira contribuição em Mosaico sobre um dos aspectos do referido texto: o propósito inquisitorial com o qual ele foi criado, objetivando impedir comunidades de fé de terem contato comigo, como se eu fosse um elemento nocivo à fé cristã. Honestamente não sinto qualquer necessidade de me explicar para um público que não entende o que se passa, não quer entender e se recusa a dialogar. Confesso que o esforço emocional e cognitivo além do tempo empregado não compensa. Mas me chama a atenção como se passa batido sobre o “cerceamento de liberdade” que se vê numa fala como esta. E como importantes segmentos religiosos, se emprestam para tamanha difusão. Logicamente vivemos tempos muito mais caóticos e sem sentido do que temos nos dado conta.

Sim, eu fui à Cidade de Refúgio e estive com as referidas pastoras. Como pesquisadora do campo de estudos de gênero, tenho lecionado sobre teologia e gênero há duas décadas em inúmeros seminários e não foi minha primeira visita a uma igreja inclusiva. Visitei outras no passado e levei comigo vários alunos de teologia porque entendo que temos que suspender julgamento até que tenhamos vivenciado uma experiência conectada com as pessoas destas realidades que nos permita compreender um mínimo daquilo que atravessam.

Estive nesta comunidade duas vezes, em Junho e Julho deste ano, porque Deus me mandou ir. As pastoras me chamaram para ensinar a Bíblia, e Bíblia eu posso ensinar até num terreiro de Candomblé. Elas me falaram que a Cidade de Refúgio não é uma igreja inclusiva como as que eu conhecia. E constatei que não é mesmo. Disseram que eles tinham aprendido a ter com os textos de exclusão uma experiência com a Graça de Deus de justificação e de transformação. Eu resisti ao convite durante dois meses, até que a forma inegável como o Senhor me conduziu para visita-los me presenteou com a experiência de conhecer uma enormidade de gente outrora excluída, agora acolhida, adorando, cantando e dançando com a intensidade de vozes e corpos libertos e restaurados. A adoração daquela igreja parecia um show do “The Voice” de tanto talento extraordinário reunido num mesmo lugar. Testemunhei uma visitação do Espírito Santo que há muitos anos não vivenciava.

O Espírito Santo falou alto para mim com a visão de Pedro na casa de Simão, o curtidor, em At 10. Simão, um homem, provavelmente judeu, que mexia em cadáveres o tempo inteiro. Sua casa deveria estar repleta daquele odor “gostoso” de sebo, cadáver, sangue e pele de animal misturado. O “estômago santo” de Pedro deveria estar embrulhado, mas na visão o Senhor falou: mata e come. Claro que como Pedro era muito “espiritual” ele respondeu: “de maneira nenhuma, Senhor.” Aliás esta frase dele é recorrente. Mas a visão insiste dizendo: “não chames impuro aquilo que eu purifiquei. … Levanta-te, desce e vai com eles, porque eu os enviei a ti.”

Fiquei atordoada por ter uma prova concreta diante de mim de tantos homoafetivos restaurados e exercendo seus ministérios num único lugar. Gente comprometida com o Senhor, com a oração, vivendo em santidade, com todas as agruras de seus conflitos de sexualidade, mas que se entende alvo da graça e da misericórdia, e que teve com o texto bíblico experiência de libertação. A gente precisa aprender com eles a receber o Senhor Jesus em nossos cultos como eles recebem. “Enquanto Pedro dizia estas coisas, desceu o Espírito Santo sobre todos os que ouviam a palavra.” (v. 44). Fiquei pensando no quanto nossas igrejas tem ficado privadas da bênção destas pessoas talentosas ministrando sobre nossas vidas simplesmente porque não aturamos ver uma menina que parece um rapaz ou um jovem com uma voz muito fina, vestido como um modelo no altar, ministrando durante os cânticos.

Recentemente eu mudei de comunidade de fé, passei a residir num bairro da Zona Oeste e transferi-me como membro de uma igreja muito conhecida em nossa cidade, e ovelha de um pastor mundialmente famoso por ser alguém contundente, profundamente interessado em fazer seu rebanho refletir a qualidade do relacionamento com o Cristo que se segue. Quando ele me perguntou sobre esta experiência e expliquei com detalhes, ele disse: “que Deus te abençoe para cuidar dessas pessoas que a igreja não está preparada para cuidar. Nossa igreja não está preparada, eu não estou preparado. Acredito que Deus possa estar usando esta comunidade como uma estratégia dele para acolher estas pessoas que a igreja tem excluído. Você é uma pioneira e todo pioneiro recebe as marcas do mato e dos galhos que vão sendo cortados para abrir uma trilha. O pioneiro fica mais machucado do que quem vem depois, mas que Deus te dê força.” Eu recebi as palavras dele como uma bênção profética.

A bênção só veio depois que fui. Para que isso acontecesse, tive que levantar de onde estava, descer do meu pedestal e admitir que Deus poderia estar presente com eles a despeito da fama das fofocas. Lamento pelos líderes que não conseguem reproduzir este processo de levantar, de descer do pedestal, suspender o julgamento e ir com eles, simplesmente para ver o que Deus tem feito. Estamos deixando de conhecer essa parte do caráter de Deus que verdadeiramente não faz acepção de pessoas e de ter uma nova e profunda experiência com a graça.

Lilian Mariano

Teóloga, educadora, consultora, com expertise em Gestão do Conhecimento. Doutoranda em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologias (UFRJ).

--

--