Mística e literatura

Valdemar Figueredo
Instituto Mosaico
Published in
3 min readAug 12, 2017

A literatura e a experiência do sagrado possuem afinidades

Fotografia: Roberta Zanlucchi, Trento, Itália. Behance

“A linguagem da arte é divina. ” Adelia Prado

“Deus é um artista e não um engenheiro. ” Pie Duployé

“No princípio era a palavra!”, afirma o prólogo joanino em forma de poesia (Jo 1,1). Isto não quer dizer pouco. Se visto como uma espécie de recurso metalinguístico, que fala da palavra divina na palavra literária, este poema aponta para a indissociabilidade que marca a construção do discurso sobre Deus e da literatura.

A literatura e a experiência do sagrado possuem afinidades em suas múltiplas camadas. Começando pela antiguidade, com a doutrina do entusiasmo‖– em-théos, que denota literalmente: ter a Deus ou deuses dentro de si — e a ideia de inspiração — in-spirar, que significa ter dentro o Espírito -, é possível associar o fazer poético a atividade que fez nascer, por exemplo, os escritos bíblicos.

Podemos nos referir à aproximação da poesia à profecia, como ressalta Alonso Schökel ao comentar o texto de Jeremias (Jr 20,7–9): “o profeta sente a palavra do Senhor vitalmente dentro de si: como um fogo nos ossos, como lava ardente de um vulcão (…). Não se assemelha isso à compulsão criativa atestada por alguns escritores? ” Assim, ousamos dizer que o furor poeticus não é totalmente diferente da inspiração profética. De certa maneira, a profecia é o produto da “imaginação poética do profeta” tomado de um pathos (Villas Boas). Assim como a poesia se torna para a vida do poeta, irresistível, o profeta sente-se irremediavelmente ligado à sua vocação: “Tu me seduziste, Senhor, e eu me deixei seduzir!”‖ (Jr 20,7).

Além disso, conectando a literatura à oralidade é possível pensar a figura de Jesus de Nazaré como “poeta da compaixão” (J. A. Pagola) ou mesmo como um mestre que ensina poeticamente através das parábolas (J. L. Espinel). A apresentação poética da mensagem do Reino de Deus, sobretudo como percebida nas mashal, não deve ser vista meramente como um recurso pedagógico, usado apenas como adorno para facilitar o aprendizado dos ouvintes, mas com uma característica intrínseca à compreensão particular de Jesus advinda de uma profunda experiência com seu Abba.‖Por outras palavras, Jesus não elabora conceitos, mas conta nas ficções poético-parabólicas, algo acerca de Deus que experimentava em seu íntimo.

Ao longo da história, multiplicam-se os exemplos de uma “teopoética” dirigida pela ideia de que o sujeito que fala não dispõe da realidade sobre a qual discursa. No caso do cristianismo, podemos falar em Efrém, Gregório de Nissa, Gregório de Nazianzo, Agostinho, Pseudo-Dionísio Areopagita, Bernardo de Claraval, Johannes Tauler, Teresa d’ Ávila, João da Cruz, Inácio de Loyola, Jacob Boehme, Angelus Silesius, e muitos outros até chegar em literatos contemporâneos que problematizam a própria herança cultural cristã. No contexto do Islã, lembramos principalmente do sufismo, em especial dos nomes de Ibn´Arabī e Rūmī. Todavia, esta relação pode ser vista em diversas tradições religiosas.

Se por um lado, como lembrou o semiólogo Roland Barthes, a língua é uma prisão, por outro, a literatura se instaura como a traição que rompe os grilhões linguísticos. E, se, de certo modo, os teólogos e sacerdotes ao longo da história, na ânsia de tentar compreender, deixaram escapar a “sacra irredutibilidade” (Kurt Marti) que o falar sobre o divino exige, a literatura, por antonomásia, “enigma plural”, oposta a leitura linear das coisas, segue contrariando as lógicas conceitualistas e atrevendo-se a roçar as franjas do sagrado que não explica e facilita nada senão cria e aprofunda um mistério que abarca a todos. A realidade divina é selvagem, não se deixa dominar, circunscrever, por isso, só resta àqueles e àquelas que foram transpassados por ela, gestarem esperançosamente uma linguagem que expressa a ardente nostalgia latejante de um encontro que vive na memória do corpo. No fundo, a experiência mística e a literatura se entrelaçam e interseccionam como confissão de um mistério vivido, que por mais que não possa ser dito, paradoxalmente, exige ser contado.

Marcio Cappelli. Doutorado em teologia pela PUC-Rio. Membro do Apophatiké, grupo de estudos interdisciplinares em mística. Atualmente integra a diretoria ALALITE (Associação Latino Americano de Literatura e Teologia). Pastor Batista.

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