Militarização salvadora do governo

Redação — Mosaico
Instituto Mosaico
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5 min readFeb 27, 2018

Por Fábio Py

Leitura bíblica para o dia: 2 Samuel 24,1.9–17

Alguns filósofos, como Giorgio Aganbem e Walter Benjamin, demonstram o vínculo umbilical da modernidade e o cristianismo no ambiente europeu. Defendem que a leitura dura cristã casou parte da vida sitiada moderna. Conferem ao ambiente judeu-cristão a gestação dos ambientes, dos impérios, disciplinando cidades colonizadas por Roma, o que ajudou no incremento cerceador das mentalidades das civilizações europeias. Para explicitar uma dessas origens da conexão do cristianismo com os cercos que marcaram de forma indelével a modernidade, gostaria de ler um texto da Bíblia hebraica sobre uma figura ímpar no judaísmo. Davi, símbolo de governança, de homem segundo o coração de Deus. Ele que teria sido um grande monarca, um imperador. Poderia ser diferente? Não. Afinal, o judeu-cristianismo tem suas afinidades eletivas com os impérios depois do século IV.

Assim, olhando-se o texto bíblico de 2 Samuel 24,1.9–17 tem-se uma descrição impressionante: “tomou a ira do Senhor a ascender contra os israelitas, ele incitou a Davi contra eles, dizendo: vai, levante o censo de Israel e Judá”. Deve-se dizer que Davi ama a guerra. Ela foi seu método de domínio, de administração governamental. Se o domínio de Saul se baseou nos povos da terra e a administração de Salomão se ligava aos bens, com Davi a guerra abastece seu estado imperial. Construiu uma máquina de sangue. Para dominar os povos vizinhos e roubá-los, não se importa em massacrar sua própria população. A palavra não é outra senão massacre. Por isso, o texto bíblico indica Javé como quem ordena. Faz isso, irado contra Davi. Mas, de fato, não dá para saber se é de Deus ou de Satã, que dá a ordem, pois se lemos o texto similar, em 1Crônicas 21,1, é o adversário, Satã, quem incita Davi. Na verdade, é uma ordem tão dura (depois de tantas guerras) que não se sabe ao certo de quem vem a ordem. Se de Deus, Davi ou Satã. Na leitura dos textos em conjunto não dá para perceber. Aliás, esse é um detalhe típico da lógica fria dos estados-impérios. Não se sabe ao certo de quem veio á ordem. É muita confusão. Uma burocracia da morte. Ninguém se responsabiliza pelos cercos, no caso dos censos. Mas, os operadores do caos todos conhecemos. É a polícia, o exército. Sobre isso, no v.2, diz que o rei Davi foi a Joabe (comandante geral do exercito), e manda percorrer as tribos de Israel de Dã até Berseba para fazer o censo. Como governante, Davi usa seu próprio exército para realizar o recenseamento no território. É um covarde. E é mais sinal de que o sangue de seu povo será derramado. Pois, as contagens desse tipo condicionam invasões de casas, expulsões de locais proibidos, a numeração de famílias com os filhos. Coisa de imperadores e impérios. Tudo em nome da ganância de Davi de alimentar sua indústria de guerras. Ergue seu estado sobre o sangue de seu povo. Sacrifica-os. O povo como não sabia ao certo de onde vinham as ordens, ficava mais fácil a intervenção/contagem.

No v.9, Joabe entrega o censo para Davi. Eram 800 mil israelitas e 500 mil judaítas. E, claro, Israel é muito maior, fértil e melhor de viver que Judá, mesmo que sua famosa capital Jerusalém. Após perceber tamanho erro, da contagem forçada de seu povo, Davi indica a Deus seu erro. Diz para Deus perdoar sua iniquidade, sua loucura. Outro dado importante dos governo/impérios: a justificativa com a loucura. De por hora não estarem dentro das normalidades. Não esta dentro dos critérios é uma forma de forçar ações. A loucura é argumento comum dos governos para ações policiais contra seu próprio povo. Assim, por isso, no v.11, o profeta Gade traz os castigos de Deus. Não tinha outra forma, teria de ser castigado. Só que Deus dá três opções, três castigos que escolheria o que se preferir. Afinal, os governo-impérios sempre tem opções e vão sempre justificar com o menos pior. Sua primeira opção era para se ter sete anos de fome sobre sua terra. A fome é um claro sinal da incompetência de Davi como governante. Não ter safra é um indicio de mau governo. Já, a segunda possibilidade era de três meses de fugas sobre dos seus inimigos na sua terra (v.13). Logo, um rei como Davi não aceitaria fugir entre seu próprio povo. Era humilhação demais para um governante-imperador dono de uma maquina de guerra.

Agora, a terceira possibilidade, de ter três dias de peste na sua terra. Opção mais biológica, a doença. Com ela, seu reinado não estaria tão envolvido. Seria mais rápido para se ajustar para outra peleja. Davi escolhe diante das opções a menos pior para ele, para seu governo. É admirável. Mesmo diante do castigo sobre seu povo, prefere safar seu reinado. Se safar é parte principal da mentalidade dos governantes. Calculam friamente as opções menos piores. E, sacrificam seu povo, normalmente os pobres, periféricos. Esse é símbolo de sua opressão. Manda invadir casas, cercar regiões para contar, dificultar a circulação, os acessos. Não deixa claro de onde vem tal ordem genocida. Pode ser de dele, do general, de Deus, o diabo e o escambal. Indica justificando a ação estatal com a loucura. Diz que os tempos são complicados e que medidas drásticas são à saída. Loucuras são validas! Assim, por fim, diante de todas as opções diante do estado cerceador se prefere a opção que menos resvale sobre seu governo/império. Afinal, ele quer sobreviver! Tenta se safar. Atenção, todos e todas! Eles querem sair menos borrados com a merda do governo que construíram. Para isso, pede a cabeça do resto da população sofrida em meio a tantas guerras. Amigos e amigas, estamos falando de Davi? Cabral? Pezão? Nenhum e todos. Tudo junto. Todos merecem toda sorte de ira de Deus que caia sobre eles. Todos merecem a deposição, prisão, quiçá passear de carona sobre todas as cidades do Rio de Janeiro nos caveirões que compraram para enfileirar a população.

Fabio Py Murta de Almeida. Colunista do site Caros Amigos de temas de Religião, diálogo inter-religioso, história da igreja e história das religiões. Membro da CPT-Rio e do coletivo Vanda-Lize. Doutor em Teologia pela PUC-RIO, ênfase Fé e Política. Professor convidado do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).

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