MUITAS QUESTÕES E UMA GUERRA

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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3 min readMay 3, 2022

Por Fernando Roberto de Freitas Almeida

Foto: Divulgação

A “operação especial” russa na Ucrânia domina as atenções mundiais e, no Brasil, rivaliza com o noticiário político local, que não deixa de nos brindar diariamente com notícias dignas de um romance de Realismo Fantástico. Este gênero literário é criação latino-americana, e a criatividade nativa, desde a posse de Bolsonaro, não deixa de oferecer farto material. Gabriel Garcia Marques imaginou uma cidade colombiana, Macondo, em que o absurdo faz parte do quotidiano, como aqui.

O conflito na Ucrânia se associa a problemas regionais e internacionais, com origens antigas, e o noticiário brasileiro assumiu o ponto de vista de uma aliança militar que deveria ter sido dissolvida há trinta anos, mas não só permaneceu, como nunca deixou de se expandir e continua se expandindo. Passados mais de dois meses na guerra, o que se vê é a violência inerente à situação, mas esta tem componentes peculiares, como o fato de vir-se delineando uma espécie de “guerra por procuração”, em que países industrializados fornecem farto equipamento militar ao lado mais fraco, não no intuito de encerrar a guerra, mas de a prolongar. Não se trata de teoria conspiratória, pois analistas militares não consideram a possibilidade de vitória militar ucraniana sobre os russos. Por que isso? Porque o sistema internacional vem-se redesenhando, desde o final do século XX e o ressurgimento da Rússia como um ator relevante faz parte disso.

É notável o fato de vinte dias antes da operação, Beijing e Moscou terem assinado acordo de cooperação “sem limites”. Declararam opor-se a qualquer expansão futura da Otan e “às tentativas de forças externas de minarem a segurança e a estabilidade em regiões adjacentes comuns”. Reafirmaram “forte apoio mútuo à proteção de seus interesses centrais, soberania estatal e integridade territorial” e juntas, opõem-se à “interferência de forças externas em seus assuntos internos”. Fundamental terem declarado: “não há áreas proibidas de cooperação. O fortalecimento da cooperação estratégica bilateral não visa a países terceiros, nem é afetado pela mudança do ambiente internacional e mudanças circunstanciais em países terceiros”. A mera aceitação de neutralidade de Kiev frente à Otan impediria a operação, mas esta não aconteceu, por decisão arriscada do presidente ucraniano. O desfecho do imbróglio não pode ser previsto.

Interessante o papel brasileiro na história, pois Bolsonaro foi a Moscou quando já havia 100.000 soldados na fronteira, viajando, ao que tudo indica, para marcar posição diante do atual presidente dos EUA. O anterior, Trump, ídolo bolsonarista, tinha uma relação próxima com os russos. Estes apreciaram a demonstração de apoio, mas os tradicionais aliados do Brasil ficaram sem entender. Poderiam ter entendido melhor, se lessem textos de aliados do presidente brasileiro, afirmando que Putin teria recuado as tropas, por influência do visitante, que poderia até vir a ganhar o Nobel da Paz. Surrealismo puro. É o Brasil atual.

Fernando Roberto de Freitas Almeida

Carioca, economista e historiador, professor adjunto do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenador do Curso de Relações Internacionais

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