O caminho da retidão

Redação — Mosaico
Instituto Mosaico
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6 min readFeb 6, 2018

Por João Felippe Cury

Em 1944, Friedrich Hayek escreveu um livro eminentemente político, no qual ele expunha os argumentos em favor da “liberdade econômica” e o que ele chama de “valores fundamentais”, algo que está em voga nos últimos tempos, particularmente nos países que experimentaram um forte crescimento do aparato estatal a partir dos anos 2000. O livro foi traduzido para a língua portuguesa com o título “O Caminho da Servidão”. No prefácio à edição americana o autor dá a tônica de como pensa o liberalismo, sem que se confunda com o conservadorismo (que, segundo ele, luta por manter privilégios): “A essência da posição liberal, pelo contrário, está na negação de todo privilégio, se este é entendido em seu sentido próprio e original, de direitos que o Estado concede e garante a alguns, e que não são acessíveis em iguais condições a outros”.

Tomou-se emprestada a inspiração da citada obra para o título (e outras rápidas reflexões) deste breve artigo, cujo pilar fundamental é colocar um papel central da ação e nos princípios desejáveis na operação da coisa pública, pelos inúmeros e diversos agentes públicos, com especial ênfase nos representantes eleitos para cumprir seus mandatos eletivos. No caso aqui, defende-se o básico: a retidão de princípios e de ações em relação a tudo que se refira à coisa pública. Num Estado de Direito não se pode admitir a prática de atos atentatórios à moralidade administrativa e causadores de prejuízo ao erário público ou que ensejam enriquecimento ilícito.

Em seu sentido figurado, a palavra “retidão” indica a virtude de seguir, sem desvios, a direção indicada pelo senso de justiça, pela equidade. Ressalta, ainda, a virtude de estar em conformidade com a razão, com o dever. Sugere, por fim, integridade, lisura, probidade.

Nos últimos anos no Brasil parece útil colocar a ideia de retidão sob o escrutínio de uma crítica política. A “esquerda” brasileira parece ter sucumbido à RealPolitik — na busca da “governabilidade “ — e caminhou para uma flexibilização ética até agora sem volta. Na falta de autocrítica, sobram negacionismo, soberba e sebastianismo. E, em alguns casos importantes, sob a guarida jurídica do pensamento “garantista”. Pelas reações recentes sobre os episódios ligados à condenação de Lula, não parece haver qualquer movimento em busca de uma autocrítica. Isso é alimentado por outros setores das “esquerdas” que tem agido como satélites do “Lulo-petismo”.

Há uma justificativa que aparece como um mantra para a flexibilização ética: “nunca antes na história desse país tivemos uma chance de ajudar os mais pobres”. “Precisamos governar”. Os fins justificam os meios, mesmo à custa da moralidade em relação à coisa pública.

No caso da direita (conservadores) e de boa parte dos liberais brasileiros, parece se disseminar uma adaptação ideológica às conveniências de ocasião. Em favor da agenda de reformas — que seria aderente à cosmovisão econômica “liberal” — tolera-se um governo corrupto — clara e comprovadamente corrupto e imoral — que compra votos, aumenta os gastos públicos com a compra de votos, mas vota de acordo com uma agenda “liberalizante”. Práticas imorais justificando uma “agenda racional”.

Aqui outra justificativa também aparece como recorrente: “nunca antes na história recente desse país tivemos a chance de usar um governo impopular para aprovar as reformas”. Os fins justificam os meios.

Curiosa é a repetição do padrão “negacionista”, soberbo e “sebastianista” do outro grupo. Tudo para tentar justificar o que é injustificável: o afrouxamento ético em relação à coisa pública. Tal padrão evidencia os caminhos tortuosos de ambos os grupos. A retidão de princípios, práticas e valores acaba por sucumbir às conjunturas de ocasião. Alguns dirão que se trata se uma visão ingênua: política necessariamente é associada a coalizões, a pragmatismo, a busca de consensos. Bom, se isso é verdade, cabe lembrar que ingenuidade tem também a ver com simplicidade e sinceridade e aqui parece residir o grande elemento que está em falta na política: o apego aos princípios mais básicos e simples. No entanto, pode-se destacar apenas um: a moralidade em relação à coisa pública.

Chama atenção de como autores tão aclamados por economistas liberais como Daron Acemoglu e James Robinson são “esquecidos” na hora de se posicionar sobre certos temas, notadamente aqueles que envolvem Política e Economia. Um país com instituições econômicas e sociais virtuosas necessariamente possui como pré-requisito instituições políticas virtuosas. Será que é possível melhorar as instituições usando práticas políticas reprováveis? Aprovar reformas “comprando” parlamentares e dividindo pedaços do Estado porque isso vai melhorar as expectativas? E o legado desse tipo de ação, como é “precificado”? Como esperar um “salto” institucional com práticas tão antidemocráticas e antirrepublicanas?

Ora, em ambos os grupos citados, nota-se a mesma frouxidão ética. Uma cabível definição de “velha política” pode se encaixar no perfil daqueles que se apropriam da política institucional desprovidos da moralidade em relação à coisa pública.

Voltemos à inspiração do texto. Em seu livro, Hayek acerta ao atacar os privilégios, particularmente em sua crítica aos conservadores que buscam a manutenção de privilégios. Seu ideal liberal é apenas um em meio aos diversos tons. Há uma série de outros ideais, do socialista ao anarquista, do socialdemocrata ao social-liberal. Aqui não são os ideais pelos quais nos pautamos que estão em questão, mas os princípios e as ações que norteiam os mesmos. No caso aqui uma prática em relação a um princípio inegociável: a retidão moral em todas as relações com a coisa pública.

No mais, Hayek parece exagerar quando generaliza e praticamente “criminaliza” a discussão de privilégios. Nesse sentido, em meio aos muitos “ideais pelos quais nos pautamos”, há múltiplos matizes e perspectivas para se debater uma agenda de reformas que se coadunem com a realidade social do país (desigualdade, bem-estar, progressividade). A sua visão é apenas uma em meio à diversidade que há numa sociedade plural. Afinal, ninguém é detentor do monopólio da verdade e da virtude.

Não cabe terminar essa reflexão sem uma nota de otimismo. A rigor, tem-se evidenciado que se, de um lado na macropolítica (política institucional) o debate sucumbe às conveniências de ocasião e ao afrouxamento ético, de outro lado nos movimentos de micropolítica está sendo gestada uma geração de jovens com compromissos fortes com a ética em relação à coisa pública. Se, por um lado, é muito difícil ocupar a política institucional (macropolítica) em função da resiliência do sistema apodrecido, imoral e aético criado, por outro lado, tais movimentos parecem ganhar uma vida própria a ponto de ocupar a política de uma maneira diferente daquela que a sociedade brasileira parece ter se acostumado.

Nesse sentido vale a pena considerar a aposta nos muitos movimentos cívicos à disposição como uma forma de ocupar a política de maneira nova. Movimentos tais como a Bancada Ativista, Nova Democracia, Renove, Renova BR, Brasil 21, Acredito, Agora, além daqueles dos emergentes Convergência e o Democracia Colaborativa, dentre vários outros. Em tais movimentos, o “locus” de renovação é o Legislativo e há um elemento norteador que os une: a moralidade e a ética em relação à coisa pública. Talvez nesses movimentos resida “O Caminho da Retidão” para o qual a política brasileira precisa tanto seguir.

Por que não acreditar?

João Felippe Cury Marinho Mathias. Economista (UFRJ), mestre em economia (UNICAMP) e doutor em Economia (UFRJ). É professor associado do Instituto de Economia da UFRJ. Possui pesquisas e interesse em Sustentabilidade, Desenvolvimento Econômico, Contas Nacionais e Distribuição e Desigualdade de Renda.

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