O “Finados” da Reforma Protestante

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
Published in
4 min readNov 2, 2017

31 de agosto fica ao lado de 02 de novembro

Foto: CBicalho, Flickr

Todos os anos, desde 1517 — e são apenas dois dias de vida! Graças ao calendário, o evento volta a viver no dia 31 de outubro e morre no “Finados”.

No dia primeiro de novembro ainda vige a boa lembrança do dia anterior; ainda permanecemos sob atmosfera espiritual do nascimento da Reforma. A comemoração foi boa! A noitada, apesar de não ter sido nem um pouco puritana, valeu a pena!

Foi bem bonito observar a comemoração acontecendo em diversas universidades laicas, câmaras de vereadores, comemorações no Senado, o meu teólogo favorito aparecendo na televisão do “inimigo” — tudo tão bonito!

Talvez, o dia 2 seja uma ironia católica. Não saberei o que dizer àqueles três que saíram do Oriente no último dia 31 para conhecerem o rebento. Dizem os entendidos que o percurso até aqui dura, aproximadamente, três dias. Então, chegarão possivelmente um dia após o enterro, no dia 3, na sexta-feira da paixão do nosso luto. Mas tão belo é o étimo da palavra aniversário! Este termo vem do latim anni-versarius: “o ano que volta”. Mas o que volta nesse ano que volta desde 1517? Como repetir a experiência desse ano? Que repetiu Lutero quando repetiu o rebento crístico? Aqui estamos diante de um problema que os filósofos chamam de repetição.

Quando, ainda na infância, o matuto sai da roça para a cidade, depois de um certo tempo, ele deseja voltar para matar sua saudade. Mas, no retorno, ao deparar-se com os lugares, coisas e pessoas daquela época, surpreende-se terrivelmente consigo mesmo, porque não consegue mais viver aquela mesma alegria, mas apenas a doce nostalgia de um tempo que não está mais lá. Voltar apenas ao “mesmo do mesmo” instala a melancolia de uma nostalgia diante das coisas que passaram. Se, no entanto, insistimos em manter o rito de retorno, fazemos da experiência amarga da melancolia uma rotina desprovida de espírito que, em todo tédio, pesa e esmaga.

Que volta quando retorna o anni- do aniversário da Reforma? Se queremos que “algo”, alguma “coisa” volte, faremos a mesma experiência do matuto nostálgico, a não ser que vivamos uma saudade de outra qualidade, uma grande saudade que é saudade de nada, saudade de possibilidade de ser; que, na verdade, não é saudade disto ou daquilo. Nessa saudade atua a força mortal de vida que destrança, desfia, desfaz, de-forma.

Toda séria e boa re-forma vive da força das de-formações que atuam em toda trans-formação. Nesse caso a deformação não tem meramente o sentido de disformar, mas sim de uma cruel e implacável destruição. Não há conservação de qualquer “coisa” nesse processo de transformação. A con-formada celebração protestante de seu status quo “reformado” tende sempre para a conservação de algo que impede a doação de uma nova forma, possibilidade. O erro capital não é propriamente seu ímpeto comemorativo, mas, sim, um subjacente orgulho! A única festa digna de conservação é aquela que tem a alegria como sua anfitriã, pois a pulsão de seu conservar não serve para nada, é pura gratuidade.

O conhecido mantra dos teólogos protestantes: “Ecclesia Reformata et Semper Refomanda Est” é bonito! Contudo, além do orgulho, o sentimento que vigora ocultamente entre os arautos é o desejo nostálgico de voltar a uma certa “forma” padrão, ideal; e, assim, o termo reforma é assumido como uma espécie de restauração de frontispício teológico, que se mostra quando, por ex., alguém consegue o feito de memorizar e seguir à risca as 95 teses luteranas. Mas para ser Lutero é preciso esquecer de todas as 95 teses, pois toda transformação apenas vigora nesse bom esquecimento de vida que põe a alegria de recordar.

O chamado “princípio protestante” não é e não pode ser premissa, doutrina, saber algum sobre um determinado começo. Ele é tão somente a pulsão de um principiar que faz a vida voltar a ser vida de novo. O “voltar a ser vida” significa pulsar de novo. Esse é o sentido de uma repetição que abre, na alegria, o futuro.

Mas isso não acontece para a multidão que comemora a morte de um rebento. Isso só acontece na recordação da solidão. A massa que canta o aniversário não faz essa experiência. O coração é o Oriente onde nasce a estrela que salva e guia ao fazer voltar, de repente, o instante daquele ano. Toda recordação é saudade de nada, que faz nascer, no coração , a pujança de uma nova possibilidade. A multidão apenas lembra sem recordar. Sim, é possível uma lembrança sem recordação. Mas há uma experiência extraordinária de comemoração de vida, desde a qual é possível, ao mesmo tempo, esquecer e recordar. É uma coisa estranha que só acontece na solidão. Camões sabia bem disso quando disse algures: “A saudade é o ermo alegre da solidão”.

Eduardo Campos. Doutor em Filosofia (UFRJ), Mestre em Filosofia (UFRJ), Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ), Licenciado em Filosofia (UFRJ). Atua como pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ). Professor do Instituto de Psicologia Fenomenologico-Existencial (IFEN).

--

--