O GROTESCO E O CÔMICO COMO PROJETO POLÍTICO MISÓGINO, RACISTA E ELITISTA

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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3 min readMar 10, 2020

Por Carolina Bezerra de Souza

Foto: Canva

Primeiro, quero agradecer à Marina Caminha, uma amiga intelectual engajada com a periferia, com o popular, com a comunicação que liberta e que me trouxe duas vezes já a essa reflexão.

Eu tenho me flagrado a pensar nas mulheres, debaixo desse governo. E eu tenho pensado como com tanta violência explícita há tantas que o estão apoiando. E pensando no papel das mulheres que estão no governo, o quanto a presença delas ali justifica um discurso de igualdade de gênero, mas que diminui consideravelmente as possibilidades de atuação das mulheres. Acho que pela proximidade do dia internacional das mulheres, talvez eu pudesse me prender em desfiar a destruição das políticas e redes públicas de proteção, o quanto a reforma trabalhista atingiu diretamente a qualidade de vida delas, o quanto a reforma previdenciária também segue esse caminho de aumentar a vulnerabilidade social, especialmente delas. Acho que esses temas estão muito bem explorados por outras pessoas. Talvez eu pudesse, então, fixar a atenção no discurso advindo de instituições cristãs que seguem ignorando esses pecados estruturais e celebrando tudo isso. Muita gente falando isso também, com mais competência.

Eu quero voltar o olhar para uma questão que me chamou a atenção. Uma estratégia comunicativa que ajuda a sustentar esse quadro tenebroso: o uso do riso e do grotesco como forma de comunicação popular. Para isso, queria remeter a dois autores: Renato Ortiz (Românticos e folcloristas: Cultura Popular) e Bakhtin (A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais). Mas vou falar simplesmente: na comicidade se representa a vida, evoca uma ideia de festividade que traz consigo um elemento essencial de expressão do mundo. Dentro dela, há o uso do grotesco, seja na forma de grosserias, sarcasmo, ironias, ambivalência ou como estética. São formatos proibidos na comunicação oficial, mas que falam largamente à cultura popular, pois rebaixa o que é elevado ao plano material e corporal.

O grotesco nesse governo está em diversos lugares diariamente (relembre o episódio do comediante que falou pelo presidente, das ofensas aos jornalistas, da foto de paletó e chinelo, as risadas bobas, as palhaçadas dos filhos, a coisa de decidir e voltar atrás, e, especialmente, a figura de uma certa ministra). Intelectuais, membros de elites e círculos de poder não compreendem essa quebra de protocolo, não conseguem atravessar a dicotomia centro-periferia, pois menosprezam o popular. Então ficam ofendidos, indignados e, como não compreendem, não há reação viável, a não ser espalhar ainda mais o discurso do grotesco via redes sociais. Os apoiadores acham então que as diversas falas violentas podem ser enquadradas na brincadeira e fica tudo nesse ciclo de comunicação e justificativa. Nós que trabalhamos no campo religioso, também precisamos pensar na ligação de tudo isso aos campos simbólicos.

Depois disso, afirmo então que o que chamamos diariamente de cortina de fumaça cumpre bem esse papel, mas é muito mais. Esse uso do grotesco e do cômico é um projeto político de poder, ele é discursivo, pedagógico, colonialista, misógino, racista e elitista. E sabe como fazer para atingir a população no meio da crise de representação., como as instituições não servem, usa-se o grotesco nas instituições.

Voltando agora para as mulheres. Uma figura grotesca, apoiada religiosamente, na liderança federal da área que deveria cuidar dos direitos humanos, das mulheres e dos periféricos, é um projeto de destruição que também está na raiz dos altos índices de violência doméstica, feminicídio, o aumento a pobreza extrema, que atinge principalmente as mulheres negras. Como dia das mulheres é dia de luta, acho que essa reflexão ajuda a compor a luta.

Carolina Bezerra de Souza

Doutora e mestra em Ciências da Religião, bacharel em teologia e engenheira eletricista. Trabalha as temáticas de gênero, textos sagrados, movimentos populares e espiritualidade. Fazendo pós-doutorado em teologia na EST — Escola Superior de Teologia, São Leopoldo.

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