O eco do riso de Deus

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readSep 9, 2017

O homem pensa, Deus ri.

O místico e o literato certamente têm em comum o sentimento de não dispor do objeto ao qual se referem. O místico é aquele que se sabe tomado pela presença de algo novo e gratuito. É alguém que acessa pela via da experiência a dimensão profunda e escondida da realidade. Não foi à toa que a mística foi identificada como cognitio Dei experimentalis, isto é, como o conhecimento de Deus por experiência. Entretanto, o místico sabe que não se pode fazer com palavras nenhum relato adequado do que experimentou. O real se revela como inefável. Mas, o que isso tem a ver com a literatura?

Recorro aqui a uma passagem do escritor tcheco Milan Kundera, em A arte do romance para tentar esclarecer meu ponto. Ao se indagar sobre a origem do gênero romanesco, responde apelando a um provérbio judeu: “O homem pensa, Deus ri.” E, a partir dele, ressalta: “Agrada-me pensar que a arte do romance veio ao mundo como o eco do riso de Deus.”

Talvez possamos aprofundar um pouco a questão se pensarmos naquilo que se estabeleceu como o inverso do testemunho dos místicos e dos literatos. Ao longo do tempo certo tipo de reflexão teológica preferiu o aporte da linguagem conceitual. Esforçou-se para estabelecer-se no campo dos saberes através da arquitetura de acento racionalista e acabou tendo a mística e a literatura como uma crux theologorum. Estas, de maneira geral, construíram-se como “paraíso imaginário” onde a “posse” da verdade e o consentimento unânime foram postos em cheque. Romperam com o esquema binário do “ou — ou”, recuperando a contradição que compõe o tecido misterioso da vida.

No afã de capturar Deus e controlar a vida, certos discursos teológicos esqueceram-se que ele “ri”. Esquecendo-se disto, o reduziram a uma espécie de ídolo. Já a literatura e a mítica, ao contrário, fizeram-se justamente como espaço imaginário onde as “verdades” podem ser deslocadas e podem ser esboçadas a partir de outro cenário. Revelam-se como discurso paralelo à uma loquacidade frívola de fundo conceitualista que sequer respeitou o silêncio da pausa para a respiração entre um silogismo e outro. Ao contrário de certa teologia, ainda que oferecendo um conhecimento, a literatura e a mística não são “servas da razão”, não estão sob o escrutínio do pensamento racional que organiza a vida como uma sucessão de causas e efeitos. Mas, foram vivenciadas como poderoso “instrumento ótico”, que recolhe o imponderável e incalculável. Reconhecem e expressam o vazio entre o encadeamento causal que o anelo conceitualista ignora, subvertem discursos por meio de apropriações, absurdos e expressões que seriam impensáveis na construção conceitual. Zombam da pretensa clareza erguida sob a égide da lógica e do princípio da não-contradição como que num grito misturado a uma gargalhada: “a vida é contradição! ”

Em O nome da rosa Umberto Eco ilustra bem a sisudez do “espírito teórico”. No universo da sua obra, o escritor italiano lembra que certa teologia consolidada na Idade Média rejeitava o riso. Esta tendência é representada pelo velho monge e bibliotecário Jorge de Burgos que numa de suas conversas com o personagem Guilherme de Baskerville diz: “O riso é a fraqueza, a corrupção, a insipidez de nossa carne.” E em outra ocasião esbraveja: “O riso é incentivo à dúvida.”

No entanto, assim como Paulo (com o seu quê de místico!), afirmamos: quando estamos fracos é que estamos fortes! Quando nos damos conta da “boa ameaça” da gargalhada de Deus diante dos nossos pensamentos é que nos libertamos das amarras das certezas. Seria o riso de Deus um incentivo a dúvida? Gosto de pensar que sim. Até porque a dúvida ajuda-nos a rever-nos e a crer mais criativamente. Como linguagem que procura expressar e conduzir ao Mistério, que coloca em xeque as nossas pretensas certezas, a teologia, em conexão com a mística e literatura, pode recorrer mais ao “léxico do Espírito” e abandonar, para lembrar de Flaubert, o Dicionário das ideias feitas.

Pra finalizar volto à Kundera que, no mesmo livro citado no primeiro parágrafo, discorre ainda, ao longo de mais algumas páginas com propriedade sobre literatura, mas em dado momento remata: “é altura de parar. Estava a esquecer-me que Deus ri quando me vê pensar”. Acrescento: também é hora parar para não só para não cansar o leitor, mas porque não esqueço que desde a eternidade é possível ouvir Deus rir. E como diria Jesus de Nazaré: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça! ” Ouçamos, pois, juntos o eco do riso divino.

Marcio Cappelli. Doutorado em teologia pela PUC-Rio. Membro do Apophatiké, grupo de estudos interdisciplinares em mística. Atualmente integra a diretoria ALALITE (Associação Latino Americano de Literatura e Teologia). Pastor Batista.

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