O MAR ENTRE O AMAR E O ARMAR

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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6 min readMar 23, 2019

Por Eduardo Campos

Foto: Geronimo Poppino, Flickr

A frase “Ama e faze o que quiseres” de Santo Agostinho é muitas vezes mal interpretada, sobretudo, quando indevidamente associada a um projeto político-partidário que se afina ao desejo imediato da multidão. Em época de violência diuturna, e sob esse espírito que interpreta apressadamente a máxima agostiniana, ouve-se o seguinte apelo da voz daquele que não deseja que se desvaneça um sonho político de segurança pública: “As armas não matam, o que mata é a ausência de AMOR”. Aparentemente, a frase é inofensiva, é bem intencionada, a despeito da pieguice. Mas essa mera recordação nostálgica do amor, que toma subjacentemente como pretexto a máxima de Santo Agostinho, justificaria a política da posse — e futuro porte! — de armas? A frase do teólogo e pensador de Hipona cai como uma luva justa, bem ajustada, com “justiça”, justificando esse projeto belicoso, mas suas extremidades estão cortadas, expondo as polpas fissuradas de dedos incontidos.

A apressada interpretação da máxima está apenas eivando um apelo enrustido pelas armas. E por que seria uma interpretação ruim? Porque coloca sub-repticiamente o querer antes do amar. “Eu quero a posse de arma”, alguém diz, e é justamente para sustentar a predileção desse querer voluptuoso, que a máxima agostiniana do amor é usada. Contudo, nesse enunciado, que pode ser encontrado no Comentário da Primeira Epístola de São João, o amar vem antes do querer. Esse “antes” significa que o amar é a causa do querer, é a forja do querer, ou, melhor ainda, amar e querer tornam-se uma única e mesma coisa. Porque amor é o verdadeiro cultor de todo bem-querer. Em Santo Agostinho, o amor engendra o querer, mas o querer não engendra o amor, a não ser que o querer seja o próprio amar do amor amando. Dito isso, caberia a pergunta: quem ama quer, quereria arma? Ouve-se no ar, antes mesmo de uma resposta direta, um ruidoso e silente querer dentro desse amar que o a(r)ma com todos os “erres” de uma vontade querente e “crente”. Existe um mar revolto entre o amar e o armar do projeto sobre a posse de armas.

Mas, se retomarmos a primazia do amor sobre o querer, como sua força moduladora, como se produziria esse amar capaz de gestar um novo querer? Certamente, não é a partir da experiência que motiva o apelo político da multidão. O imperativo do amor não é uma experiência da multidão. Mesmo que pudesse encontrar uma transitória acolhida para seu ímpeto gregário, é próprio da multidão o esquecimento de amar que sempre acontece em meio ao vozerio da massa, à celeuma das opiniões, à coleção de “quereres” pessoais. A multidão é “Legião”, a hospedeira de muitas vozes, e, por isso, como diz Kierkegaard, a multidão se chama “Ninguém”. Mas o chamado do imperativo do amor só encontra ressonância no coração da solidão de um nome próprio.

Das raízes fincadas nesse coração solitário pode elevar-se seguramente a árvore, abrindo a copa frutífera de suas “obras do amor”. Mas, como esse coração amoroso não é algo que nasce naturalmente, da mesma forma que em nós cabelos e dentes costumam nascer, temos a Lei que produz artificialmente os frutos para uma árvore infrutífera. Quer dizer: mesmo que o amor não seja algo próprio da multidão, esta o exerce sob pena de Lei, ou seja, por medo. Na política, medo e “amor” possuem uma estranha sinonímia e são proporcionais: quanto maior o medo, maior o “amor”. Na verdade, esse “amor” é semelhante ao sentido dado pela perversão de uma conhecida expressão: “Violência gera compreensão”.

Devemos questionar, por essa razão, os limites desse compreensivo “amor” que nasce do medo da Lei. Por isso, volta o problema: sempre que acusamos os limites da artificialidade da Lei (“amor” como fruto do medo), e o quanto ela é inepta para resolver os problemas da cidade, recordamos, como último suspiro, que é preciso tornar natural aquilo que a Lei tentou artificialmente produzir: “amor”. É justamente para salvar o “querer” que o sonhador apela em desespero: “As armas não matam, o que mata é a ausência de AMOR”. Essa simples lembrança nostálgica sobre a “ausência de AMOR” tem como seu fundamento o querer armar, i.e., a primazia do querer sobre o amar.

Mas tenhamos boa vontade com aquele que tem medo de acordar de seu sonho bélico-político. Imaginemos, então, que o amor é aquilo que “adoçaria” o uso da arma, quer dizer, daria um tempero racional, moderado, ponderado, melhor ainda, “amoroso”! Seria a possibilidade desse “adoçar” a justificativa do uso (posse!/porte?) de arma? Em política, o café não vem com açúcar, mas pode trazer consigo a memória do gosto agradável que o açúcar proporcionara. Mas isso não basta! Somente nos romances legislativos da câmara dos deputados o café é necessariamente servido adoçado. E é aí que mora o perigo do desejo de armar “amando”, um desejo de armar adoçado pelo “amar”, pois, no frigir dos ovos, a vida não adoça artificialmente (como pretende fazer a Lei através do medo!) aquilo que naturalmente é amargo. E o armar tem pressa, mas o amar anda devagar, ou, ainda, nada devagar e sereno sobre as perigosas vagas do mar da existência. As braçadas da Lei não podem dar o fôlego que anima o espírito solitário do amor.

Quem sente a doçura dessa solidão amorosa não sente a necessidade, o querer do gosto acre das armas. A necessidade do armamento cresce quando a possibilidade amorosa aos poucos desaparece do horizonte da vida. Para a loucura amorosa basta o amor, porque o amor é “…feliz e forte em si mesmo” (Drummond). Quem, amedrontado, desculpa as armas a partir da necessidade de “amar”, e quem não sentiu que o amor é “…feliz e forte em si mesmo”, vive uma espécie de nostalgia amorosa que passa a culpar o açúcar (“…a ausência de AMOR”) pelo amargor do café (“As armas…”). Guimarães Rosa viu esse fenômeno como ninguém, quando disse: “O açúcar é um pozinho branco, que dá muito mau gosto ao café, quando não se lho põe…”. Nesse mesmo espírito pensa ingenuamente o desejo de armar: “A culpa do amargor das armas só pode ser da ausência do amor”, da mesma forma que a culpa do amargor do café só poderia ser da ausência do açúcar. E é dessa maneira que, estranhamente, o “AMOR” se torna um “pozinho branco, que dá mau gosto” às armas, “quando não se lho põe”. Ao legislar, tomando como base os anseios da multidão, o político pressupõe essa cômica ideia.

Café é amargo; é amargo o café! A ausência do açúcar não é a causa do amargor do café. Contudo, há aquele que pode até tomar café sem açúcar, porque o gosto amargo do café lhe parece gostoso. Mas esse é um tipo raro e solitário, como já dissemos acima, que vive o sabor e ao sabor daquela criadora inocência para além do bem e do mal, do doce e do amargo. Esse tipo solitário até teria o direito de empunhar a arma, mas não quer. A multidão até quereria o direito de empunhar a arma, mas não deve.

A frase “Ama e faze o que quiseres”, quando se casa com as intenções legislativas das Legiões político-partidárias, costuma ser a bandeira amorosa do projeto político mais odiento.

Eduardo Campos. Doutor em Filosofia (UFRJ), Mestre em Filosofia (UFRJ), Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ), Licenciado em Filosofia (UFRJ). Atua como pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ). Professor do Instituto de Psicologia Fenomenologico-Existencial (IFEN).

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