O papel da teologia feminista II

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readOct 25, 2017

Combater o patriarcado, machismo e sexismo

Foto: Rute André, Behance. Retratos de mulheres que participam na escola, A Semente. Santiago de Compostela. Publicado em 31 de março de 2014

Certa vez um conhecido cristão me disse algo assim: “A bíblia não ensina a violência contra a mulher, praticá-la é contra a doutrina cristã, se uma pessoa a comete não deveria estar numa igreja. Nós não precisamos de feminismo porque ele inverte a ordem da autoridade.” Essas afirmações refletem ideias comuns dentro das igrejas, mas contêm muitos problemas.

Primeiro problema, ele não compreende que cada parte da bíblia tem um contexto cultural onde foi escrita e, no geral, podemos afirmar que os contextos são patriarcais, portanto a elevação da imagem dos homens e a diminuição da imagem das mulheres são esperadas como produções culturais dominantes e devem ser questionadas. Devido ao ambiente patriarcal, muitas passagens apresentam, sim, problemáticas com respeito à violência física contra a mulher (há textos em que mulheres são perseguidas, violentadas, abusadas, exploradas, humilhadas…), ou, ainda, que não são entendidas como uma situação de violência porque ela é naturalizada. Voltaremos nesse assunto em algum texto para frente, explorando algumas dessas passagens.

Meu conhecido também parece entender a violência contra a mulher apenas como violência física. Porém, o fato de um homem entender a sua própria opinião como mais importante do que a de uma mulher é violência. O fato de ele entender que pode comandar uma mulher também é. E o fato de silenciá-la também.

Outro problema é que as pessoas violentas estão nas comunidades. Não temos (e não podemos ter) controle sobre as pessoas que pertencem a qualquer comunidade cristã. Em geral a violência é velada, seja doméstica ou não, ou “permitida” pela doutrina da submissão. Proliferam-se casos de assédios nas igrejas. Muitos líderes são coniventes com a violência dos homens para que se preserve o casamento, pervertido pela violência. Mulheres são orientadas a permanecer em lares e situações de violência ou a ocultá-las para não manchar a imagem de seus maridos, de líderes na igreja e para manter o “bom testemunho” sobre a igreja cristã. Essas situações podem ser uma das raízes da depressão feminina, que é crescente nas igrejas.

Então, não podemos simplesmente achar que o feminismo não é necessário dentro da igreja e fingir que os casos de violência são isolados. É preciso repensar a forma como a doutrina (construída por homens), a interpretação bíblica (também ainda de maioria masculina), a estrutura e a orientação comunitária são fonte de sofrimento para as mulheres, que são a maioria nas comunidades cristãs. Ou seja, ao propagar ideias sexistas e patriarcais, as igrejas imputam sofrimento à maioria de seus membros, pois se fazem cegas, mudas e surdas aos seus anseios. Isso é muito sério.

Uma problemática profunda aqui é que somente retirar os violentos da comunidade cristã não resolve o problema da violência. Primeiro, porque, como foi mencionado, a maioria dos casos permanece oculta. Depois, porque essas pessoas continuam existindo na sociedade. Ao tomar esse tipo de atitude, apenas autoprotetora do seu interior, a igreja se isola, fecha os olhos para o mundo que a cerca e ignora sua missão de pacificadora. Não estou aqui dizendo que é preciso ser conivente e manter a pessoa no meio cristão, mas que denunciar a violência, tratar agressores e vítimas e educar, tanto a comunidade como a sociedade, com respeito aos direitos humanos é papel da igreja que imita a Cristo.

Uma última questão é o não entendimento do que é feminismo e de como este pode existir no meio cristão.

O objetivo maior do feminismo não é a inversão da hierarquia, mas o fim da desigualdade.

Embora muitas vertentes feministas advoguem que a religião é reprodutora do patriarcado e das suas violências e por isso deveria ser abandonada, existe um grupo que está ciente desse papel reprodutor da religião, mas não quer abandonar a fé. Esse é o grupo que desenvolve a teologia feminista. Essas teólogas e teólogos querem rever as tradições cristãs, suas doutrinas, a interpretação bíblica e a pastoral com base nas perguntas que abordamos no texto anterior.

Os problemas na fala do meu conhecido são bem comuns no meio cristão. As colaborações da teologia feminista para o dia a dia das igrejas podem corrigir essas distorções. A teologia feminista pode mostrar que textos apresentam violência contra a mulher; explicitar situações comunitárias cotidianas que reproduzem patriarcado, machismo e sexismo; trabalhar para a modificação da cultura eclesial patriarcal a partir da sua própria linguagem; formar lideranças sensíveis às questões de gênero; elevar a autoestima de mulheres e sensibilizar homens para as suas necessidades e tantas outras possibilidades. Assim, colabora com a construção de comunidades justas que buscam a justiça para o mundo.

Carolina Bezerra de Souza é cristã, brasiliense, com metade do coração em Recife e um pé em Curitiba. Doutora e mestra em Ciências da Religião, bacharel em teologia e engenheira eletricista. Trabalha as temáticas de gênero, textos sagrados, movimentos populares e espiritualidade.

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