O PERIGOSO SILÊNCIO

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readAug 5, 2019

Por Carlos Netto

Quero falar de liberdade. Há tempos que não somos tão confrontados com o impacto dela em nosso cotidiano. Diante do estado beligerante que nos encontramos, ouvimos com mais frequência os alertas: “Devemos nos calar”, afirmam alguns. “É melhor não ter posição pública”, defendem outros. “Qual a necessidade de expressar seu desconforto com a situação atual?” “Você precisa mesmo disso?” Perguntam pessoas que desejam o seu bem. “E os impactos na vida profissional? Empresas julgam comentários nas redes sociais e você pode passar por radical ou destemperado”, avaliam outros. Que tempos!

Foto: Pixabay

O psicanalista Sigmund Freud defende que o ser humano tem pulsões conservadoras. Volta-se basicamente ao passado porque nos parece ambiente mais seguro. Saudosistas inveterados, alguns ficam confortáveis em ver o passado reeditado e são tomados por uma necessidade de ordem, em especial quando amedrontados pelo estado de constante litígio entre verdes-e-amarelos x vermelhos, direita e esquerda e tantas outras polarizações que nos tomaram nessa onda de nós x eles. Diferenças são saudáveis, no entanto somos maiores do que o mundo estreito que teimam em nos empurrar.

Ter posição se tornou perigoso. Por quê?

Nos sentimos frágeis, em especial quando algo que não sabemos ao certo nos assusta. O silêncio soa como a posição equilibrada de quem não sabe como lidar com a suspeição do outro. E julgar está na moda. Os silenciosos podem parecer maduros, equilibrados, frios e pairando acima dos fatos. O status quo político dominante agradece. Ele não se cala. Ao contrário. Entendi ultimamente que a violência da fala do outro, diariamente despejada, aperta a mordaça invisível imposta do silêncio. Outro dia li sugestões de fazer da arte a válvula de escape daquilo que intoxica. Acontece que a arte é terrível. Ela é brasa viva que nos queima. Quando penetra em nós tem a condição de promover o encantamento com os desafios do mundo. De forma singular, na experiência de cada um, a arte nos tira do silêncio e nos faz encarar o real, de uma forma ou de outra. Ela não anestesia. Provoca.

O processo civilizatório não se constrói no silêncio. Precisamos ter consciência disso. Cada um de nós tem o dever de dar o salto da vida natural dos animais viventes para a cultura dos seres dotados da razão, algo que nos distingue de forma singular. Não chegamos a cultura sem voz. Gosto da definição da arte como o ser em movimento. Ela projeta o espírito na frente do corpo. Cabe ao corpo acompanhar aquilo que o espírito indica, realizando-se pelos instrumentos de manifestação humana. No campo artístico vencer o silêncio é evidente. Já no aspecto profissional é necessário transpor a barreira que nos identifica como inferior aos artistas. Cada profissional tem o potencial para ser um artista do seu ofício, seja ele qual for. Não é possível desenvolver potencialidades sem a expressão política do quanto aquilo que fazemos deveria ser mostra do cuidado com o outro.

Reforço este ponto: o trabalho deve ser produzido como meio de cuidado com o outro. Isso é político e reforça o filtro crítico do quanto o cidadão não merece qualquer coisa. Ou seja, aquilo que fazemos expõe nossa atuação pública. Não há o absoluto do silêncio. O constrangimento por se posicionar merece nossa atenção. Técnicos tem sido tolhidos de se manifestarem. Ao vencerem o silêncio nos alertam sobre os perigos dos tempos atuais. A reação ao que dizem mostra o quanto. Se por um lado estimulam o silêncio e temor de alguns, por outro despertam atores que sabem da relevância de exercerem sua autonomia.

Muitos acreditam que não falar sobre política-partidária nos coloca na falsa segurança do anonimato. Ledo engano. O trabalho é uma oferta política ao mundo, socialização do espírito único do trabalhador e desvendar da natureza. Minha tese aqui é o quanto inútil se mostra o silêncio. Não obstante os surdos e mudos voluntários, enfastiados de tudo que, sabemos nós, impactam nossas vidas com o asco sentido, a questão é que o mundo vive e somos chamados para nos pronunciar. O mundo respira e nos conta segredos. Querendo ou não, somos puxados pela nossa presença no mundo. Somos semeadores dele. O compromisso com o descompromisso é a pior forma de ser. Vazios no nosso silêncio abrimos espaço pra que: pensem por nós, decidam por nós, falem por nós e somos transpassados pela convocação do Armagedom bélico de quem vive em guerra.

Estamos enraizados no tempo e na história, não há como calar. Nossos olhos, por exemplo, entregam aquilo que a boca teme verbalizar. A liberdade é necessidade, tenhamos consciência disso ou não. Salvar-se sozinho diminui a natureza humana. Isolados em nossas torres do não dizer, tornamos o nosso espírito ainda mais prisioneiro do medo que nos habita. É no outro que encontramos a força que, por vezes, não temos. A ele oferecemos nossa voz, quebrando o silêncio que julgávamos nos camuflar.

Carlos Netto

Bacharel em História (UFF), mestre em História Social (UERJ), mestre em Ciência da Informação (UFRJ), Doutor em Psicologia (USP) e Pós-doutorando em Comunicação Social (USP). Pesquisador associado da Universidade de Coimbra, Portugal. Professor da FIA-USP. Coordenador do trabalho voluntário A Arte Abraça Brumadinho. Membro do Conselho da Fras-le, em Caxias do Sul. Foi diretor do Banco do Brasil por 7 anos.

www.institutomosaico.com.br

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