O PREÇO DA VERDADE. “CHERNOBYL”: MAIS DO QUE UM NOME.

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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7 min readOct 9, 2019

Por Carlos Netto

Já temi o preço da verdade, mas agora apenas pergunto: qual o preço das mentiras? Cada mentira que contamos gera uma dívida com a verdade. Um dia essa fatura será paga.” (Trecho da minissérie “Chernobyl”)

Foto: Divulgação. Série “CHERNOBYL”, HBO

A minissérie de televisão “Chernobyl”, exibida no Brasil pelo canal HBO, tem roteiro primoroso e atual. Doloroso, mas de grande relevância para estimular nossa reflexão sobre o valor da vida humana antes, durante e depois das catástrofes. Mais do que isso: o valor da verdade em nosso quotidiano. Decisões são tomadas em prol do status pessoal, cargos e poder, deixando de lado os riscos para milhares de vidas humanas. Em “Chernobyl” vemos Mariana, Amazônia, Brumadinho e realidades recentes que conectam passado, presente e futuro. Entre o político e o cientista, avalie em que confiaria a verdade. Temos visto esse debate no Brasil. Lembro dos enfrentamentos que o ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), exonerado pelo Governo Bolsonaro, teve com o atual Ministro do Meio Ambiente.

A minissérie se destaca pelo realismo e sensibilidade da narrativa centrada também no olhar dos cidadãos anônimos, passando pelos bombeiros, funcionários da Usina, agricultores e familiares que demoraram a ter informações seguras sobre o que estava acontecendo e o nível de risco que foram expostos. Ouvi o mesmo duas semanas atrás em Mariana (MG). “Qual o nosso nível de contaminação? Como aquilo que ingerimos hoje impactará o nosso corpo no futuro?”, perguntou uma das vítimas quatro anos depois da tragédia. Isso é ciência. Pode haver dúvida sobre o grau de contaminação do minério que afetou águas, campos e animais? Na minissérie é visível a desumanidade da burocracia soviética, mas que não parece tão distante da burocracia desejosa de agradar ao Estado, minimizando notícias “ruins”. Ou de defesa das empresas que nos empregam. Qual o ponto de corte? Como preservar nossa autonomia diante das necessidades do sustento? Não se deve jogar tais questões para debaixo do tapete. Elas aparecem ali para que nos olhemos no espelho. Toda empresa tem um valor social e nos cabe zelar pelos efeitos que causam nas pessoas.

As cenas, no filme, do comitê de crise instalado, com o alto comando do Estado Soviético, merece ser estudado nas empresas e escolas de negócios. O que dizer? O que evitar? Quem fala? Quem se cala? Onde a verdade aparece? Lembro de Chernobyl. Hoje entendo que é muito mais do que um acidente nuclear. É uma forma de tratar o ser humano. Há erros humanos, é verdade, mas também decisões de cunho estrutural que descartam o risco provocados em vidas humanas diante da redução de custos. Acidentes da magnitude do que vemos no filme sacrificam gerações futuras. Baseado em uma história real, há caso de um bebê, ainda no ventre da mãe, que absorve os efeitos da radiação. A mãe é preservada, mas a criança morre. Entre os trabalhadores da mina de carvão, chamados para resolver uma das situações de contenção dos efeitos da explosão do núcleo do reator, o bônus prometido de quatrocentos rublos não é o que decide. Mas é o que os “executivos” ofertam como prêmio. Sabiam que iriam morrer em breve pelo contato com a radiação. É a honra humana que está em jogo para salvar milhões de vida, mesmo sem terem responsabilidade no desastre. O burocrata é preservado do contato com as maiores situações de risco, já os trabalhadores se mostram como os verdadeiros heróis. Fazer contato com isso é inspirador, merece atenção. Há história ali que precisa ser contada. Bom estar diante disso.

A minissérie é muito pedagógica. Mesmo que você não seja um engenheiro nuclear entenderá, ao longo do filme, coisas mais relevantes do que aprendeu na escola durante aulas de Física. Alguns acham que o risco nuclear é algo complexo. Ciente disso, o roteiro é muito inteligente para que compreendamos como nossas vidas estão nas mãos do Estado, manipulando informações e aquilo que cientistas apresentam em seus estudos. “Chernobyl” pode provocar discussões sobre o uso da energia nuclear para um grupo maior de pessoas. É extremamente difícil conhecer, de fato, o grau de vulnerabilidade da planta de uma Usina Nuclear. Depois de Chernobyl e Fukushima não podemos garantir que nunca teremos acidentes de alta gravidade. Países como Alemanha, Suíça e Itália já discutiram o tema realizando referendos que levaram ao abandono da energia nuclear. Em outros países, no entanto, como é o caso do Brasil, há quem defenda a entrada com mais vigor do uso da energia nuclear. É um assunto difícil de mobilizar pessoas para refletirem sobre os impactos daquilo que temos ouvido no Brasil, mas a minissérie pode ajudar.

O fato é que o homem desenvolveu tecnologias que não controla completamente. O filme mostra que operadores da Usina não imaginavam que o núcleo do reator havia explodido. Do ponto de vista da gestão havia “engenheiro-sênior” com 25 anos de idade. Entre teoria e prática há dimensões que revelam interesses políticos não confessáveis. As cenas dos efeitos da radiação aguda nos seres humanos e no meio ambiente são reais. Há uma cena que bombeiros que trabalharam para debelar o incêndio são colocados em caixões selados e, sobre eles, despejados massa de concreto. Até hoje roupas com alto grau de contaminação, mais de 30 anos depois, são ameaças e merecem cuidados especiais. O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas é hoje realidade quando sentimos os seus efeitos. As pessoas acreditavam, mas um tanto descrentes sem sentirem, mais diretamente, os seus efeitos. Incêndios na Escandinávia, secas em áreas antes férteis e tufões em proporções crescentes mostram que a natureza cobra a conta da falta de consciência não apenas dos governantes, como, em especial, da sociedade de forma geral. São assuntos que só aparecem com maior relevância na pauta quotidiana quando catástrofes acontecem.

A equipe que produziu a minissérie transmite mensagens importantes. Avalie bem o repertório de políticos diante dos cientistas. Eis uma das lições do filme. Reduções de custos podem significar ajustes nos programas de segurança que colocam em risco funcionários e população ao redor da produção. A grande maioria não tem dimensão do risco que correm. E talvez nunca terão, salvo quando tragédias acontecem. Não se deve abrir mão, em hipótese alguma, da autonomia que devemos ter quando tratamos da verdade. Eis o ato heroico de cada um, no ambiente que estiver, perante pressões do poder institucional. A estrutura não pode estar acima do homem. Cabe ao homem se impor na construção do conhecimento que é capaz de construir.

A catástrofe não se limita aos fatos que levaram aos acontecimentos do dia 26 de abril de 2016. Após a explosão e vazamento de radiação, vê-se os esforços para alcançar verdade na discussão sobre consequências do acidente, o trabalho de vidas humanas que se colocaram em risco para minimizar os riscos da radiação, os interesses do governo para silenciar o assunto, inclusive para achar culpados “fáceis” sem a devida averiguação. Antigos vícios aparecem ainda de forma mais evidente após o desastre. É como colocar a culpa das queimadas na Amazônia na conta das ONGs, por exemplo. Mundos não tão distantes do nosso para quem tem olhos capazes de ver. Os ataques sistemáticos a verdade podem conduzir um país ao desastre. Como George Orwell nos ensinou, seja de direita ou esquerda, a forma como exercemos o poder pode ser cruel com a vida humana. Pessoas admiráveis salvando vidas e Governo desconectado com a verdade. Culto ao personalismo e ações anônimas da mais alta relevância na solução dos problemas. Depreciação dos técnicos que questionam o status quo: isso se faz presente na vida empresarial? Fundamental pensar sobre isso.

Por fim, não importa o que queremos crer. Não importa o que é a história que contamos sobre o mundo. A verdade é a verdade no campo da ciência. Não se organiza o entendimento sobre a vida baseado naquilo que um partido político nos pede que creiamos ou defendamos. Tudo o que nos desconecta da verdade e dos fatos, merece muito cuidado. Sempre há um preço a ser pago. Somos seres humanos em perigo pela forma como tratamos o planeta. Ele se resolverá, como sempre se resolveu em bilhões de anos, mas nós não. Os cientistas nos advertem da mesma maneira que advertiram sobre os reatores soviéticos RBKM. As autoridades escolhem o que escutar e o que ignorar. A sociedade é, por vezes, indefesa diante da estrutura de comunicação e o aparato do Estado e dos interesses econômicos. Universidades são ameaçadas. A verdade não importa, o exercício do poder sim. Aquilo que o passado já nos ensinou não importa. O futuro muito menos. O termômetro do aquecimento global é ignorado ou tratado com ironia. “Gretas” sofrem os ataques daqueles velhos conhecidos de sempre. Eis o problema que ainda precisamos enfrentar. Fingimos que somos superiores aos fatos. Não somos. Eles nos encaram e não há como fugir deles.

Veja “Chernobyl”. Trata-se de olhar atual sobre o Brasil e o mundo de hoje. Precisamos de lucidez.

Carlos Netto

Bacharel em História (UFF), mestre em História Social (UERJ), mestre em Ciência da Informação (UFRJ), Doutor em Psicologia (USP) e Pós-doutorando em Comunicação Social (USP). Pesquisador associado da Universidade de Coimbra, Portugal. Professor da FIA-USP. Coordenador do trabalho voluntário A Arte Abraça Brumadinho. Foi diretor do Banco do Brasil por 7 anos.

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