O QUE DEU A JUSTIFICAÇÃO PARA QUE OS COLONOS AMERICANOS SUBJUGASSEM ÍNDIOS, NEGROS E NAÇÕES “PERIFÉRICAS”?

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
Published in
4 min readFeb 10, 2020

Por Valdemar Figueredo (Dema)

Fronteiras e passagens na relação entre igreja e estado

Foto: Robert Neelly Bellah, Divulgação

Robert Neelly Bellah opta por examinar a Religião Civil Americana a partir do instrumental interpretativo próprio das análises dos Mitos. Mas como tratar as origens dos Estados Unidos em termos dos mitos, sendo que parece mais apropriado o uso de “ferramentas” típicas dos historiadores? Não estaria incorrendo no perigo da falta de objetividade?

O interesse de Bellah não se restringe aos marcos históricos, mas avança na tentativa de compreender o que foi fundamental para que os marcos históricos fossem estabelecidos. Trata-se de uma reconstrução histórica interpretativa a partir dos símbolos disponíveis. Vemos que o chamado “mundo novo” pode ser compreendido nos termos propostos pela obra em questão se houver um detido olhar num mundo não tão novo assim.

Curioso perceber as expectativas em torno do “mundo novo” por parte dos europeus. Os relatos são cheios de imagens que remetem à ideia de paraíso. Numa leitura triunfalista da América, exaltam-se os seus atrativos e os seus potenciais. Harmonia no Estado de Natureza — como concebe Locke. Numa leitura pessimista do Estado de Natureza, a América é tida como caos em termos geográficos e sociais. Longe da imagem de um paraíso, estaria mais para uma selva. Os europeus que observavam o “Novo Mundo” dividiam-se quanto aos sentimentos despertados: enquanto uns se sentiam profundamente atraídos, outros o viam como sombrio e ficavam amedrontados. Essa atração e esse medo foram expressos à luz da tradição bíblica cristã.

A leitura alegórica da bíblia, com seus constantes usos de mitos para compreender realidades atuais, levou os desbravadores da Nova Inglaterra a pisarem nessa terra como antevendo o gozo da Terra Prometida. Como na tradição bíblica, antes do deleite da terra que mana leite e mel era necessário passar pelas agruras do deserto. A descrição do Velho Testamento de povo escolhido e do Novo Testamento de novo céu e nova terra foi apropriada pelos que se propuseram a construir uma nação santa (nação santa no sentido bíblico).

É importante lembrar o movimento da Reforma Protestante na Europa, pois estamos lidando com expressões bíblicas bem enraizadas nas vidas dos europeus que tinham diante de si o fascínio e o medo, quando se reportavam à América. Sentimentos esses contidos e canalizados pelas imagens bíblicas.

Agostinho contrapõe a cidade de Deus à cidade dos homens, ordem divina e ordem humana, transitoriedade de eternidade; essas noções estavam bem claras para os que tinham o estabelecimento de uma nova nação como missão cristã. No caso da Nova Inglaterra, haviam acordado quanto ao caráter espiritual do empreendimento. Optaram por uma relação de fidelidade aos preceitos bíblicos e esperavam como contrapartida as bênçãos de Deus.

Na montagem de uma matriz do pensamento cristão que visa equacionar virtude cristã com virtude cívica, as contribuições de João Calvino são significativas. As experiências da cidade república de Genebra foram consideradas pelos puritanos que chegaram à Nova Inglaterra. O calvinismo enfatiza o individualismo na perspectiva do coletivismo. Em termos teológicos, a experiência da conversão é essencialmente individual e levará o converso a certos comportamentos sociais previsíveis. Os Puritanos davam grande importância ao caráter moral. A conversão não se restringia à devoção puramente privada.

Digno de nota que além dos símbolos bíblicos a nova nação fez constantes usos da tradição política inglesa. Essas imagens foram determinantes na feitura das instituições coloniais. Algo também da filosofia clássica foi apropriado.

Na sequência nos deparamos com as seguintes questões: o que deu a justificação para que Israel desapropriasse os nativos de Canaã? E o que deu a justificação necessária para que os colonos americanos subjugassem índios, negros e nações “periféricas”? Para as duas perguntas há uma só resposta: a concepção de que se tratavam, cada uma a seu tempo, de uma nação escolhida por Deus e de que estavam cumprindo propósitos Dele. Bellah fala da formação de consciência popular. Compartilhavam de um imaginário bíblico que os punham na condição de povo eleito por Deus.

BELLAH, Robert Neelly. The broken covenant: American civil religion in time of trial. Chicago: University of Chicago Press, 1992.

Valdemar Figueredo (Dema)

Editor Instituto Mosaico, professor universitário e pastor batista. Doutor em ciência política (IUPERJ) e em teologia (PUC-RJ). Mengão, periferia, MPB e poesia.

--

--