O RAP É ESPIRITUALIDADE POPULAR

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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6 min readApr 26, 2018

Por Bruno Rocha

Foto: Fernando Eduardo / Flickr

A insurgência do rap, aliada a uma fé libertadora e profética tem a possibilidade de lutar contra a opressão de um estado que gera em seu ventre a servidão e a alienação. A desobediência que inverte as lógicas da engrenagem desigual no qual funcionam nossas cidades e campos, a transgressão contra leis injustas, a denúncia contra injustiças sociais e os preconceitos que nos rondam, são características que podem ser encontradas tanto em uma espiritualidade latino-americana como no rap nacional, que tanto nutrem a energia do povo e que inspiram comunidades a lutar pelos seus direitos, contra o capitalismo e contra o estado. Quando a profecia e o rap são tocados, há comunhão de humanidade. Quando a dor é tratada na letra, os corpos e mentes são tratados em vida[1].

O rap evoca um espirito de liberdade e de luta, o MC traz para si e para o público uma postura mais consciente dos problemas históricos que nos acometem a anos. A letra empodera e ajuda a ter o controle frente a vida. Resgata momentos de violência ou de privação que, compreendidos, tornam a comunidade em povo organizado, consciente de sua classe e da sua luta. Nas palavras de Nanci:

Os rappers são delatores/relatores de um Brasil desigual.

Denunciam os desmandos de autoridades e policiais, as chacinas e homicídios, a ausência de políticas públicas, o caráter classista do Estado brasileiro e suas instituições. Colocam no imaginário nacional a periferia como ato de fala, dão visibilidade à área em que vivem um cotidiano de miséria e violência.[2]

Quando, por exemplo, o rapper pede para aqueles que participam do seu show, colocarem os punhos cerrados para cima, ele está fazendo memória de uma resistência de classe, que faz o adolescente ali envolvido se apoderar do conhecimento e da luta que envolve a cultura da qual ele pertence. Mesmo o jovem branco, de classe média ou rico, estará sendo exposto ao conteúdo ideológico daquele que canta, transformando também a consciência do rico. O rap então se torna uma ferramenta de educação social e popular, produzido, pensado e auto gerenciado nas bases sociais, contra as estruturas de poder desiguais.

Como parte das características essenciais da formação da cultura do rap, encontram-se toda forma de autonomia, liberdade e independência[3]. Sendo um estilo musical marginal, ele precisou cavar pouco a pouco o seu jeito próprio de se organizar e ser mercado. A falta de recurso sempre foi marca fundamental na construção do movimento, mas nenhuma dificuldade foi grande o bastante para deixar que a mensagem chegasse em tantos lugares, como já foi falado. Isso acontece pela força comunitária que o povo tem, desde a reunião coletiva para a produção (um tem o vinil, outro a pick-up, outro o sample, o microfone, etc), à iniciativa independente de venda (seja no antigo “mão a mão” na frente da galeria do rock, ou a venda e divulgação através das mídias digitais).

O rap traz um senso de pertencimento comunitário tão contundente que empodera a militância e problematiza, assim como acrescenta, novos conceitos do conhecimento.

Ele está também nas disputas territoriais e ontológicas dos símbolos e conceitos que elaboram sua práxis. Nesse momento em que a apropriação cultural toma conta dos espaços de discussão, o rap também propõe uma luta coletiva contra todos os tipos de injustiças sociais, mesmo entendendo o lugar de onde se fala, quem fala, ele faz da luta de um a luta de todos e todas. O rap desbanca a consciência burguesa de uma criação conservadora, trazendo luz e consciência. Não faz da pessoa, pobre, negra ou oprimida, mas traz um ambiente de libertação e renovação de mente[4].

Para encerrar essa breve reflexão, é bom salientar que esse estilo musical também vive suas contradições e tensões internas. Nada e nem ninguém está imune à críticas e problematizações. Questões sobre ascensão social, ostentação, temas injustos e preconceituosos, juventude rica que produz e faz rap, ainda rondam a cultura e serão desenvolvidos e analisados em outra oportunidade. Mas é interessante observar que a postura[5] e as letras de muitos MC’s ou grupos, tem sido revisadas[6] e repensadas. Mesmo grupos consolidados no cenário (por exemplo, Racionais Mc’s) tem entendido o chamado urgente de uma nova consciência social e política[7] em suas letras, deixando de fora músicas que reforçam estigmas preconceituosos ou machistas.

O rap traz responsabilidade pessoal frente a posturas mais honestas com a vida em sua integralidade. Não diz respeito apenas à sociedade, à terceiros, mas também à uma resposta pessoal como cidadão, como alguém que se conhece e se entende como parte essencial para a mudança coletiva[8]. O rap é espiritualidade popular, é mensagem de esperança ecumênica e inter-religiosa, que une todos e todas em uma única direção: a libertação do povo oprimido. Como a profecia que eclode da vida do povo pobre que sofre, o rap canta e denuncia as desigualdades contra o povo simples. Outras indagações e inquietações sobre o movimento estão a surgir. O conhecimento acadêmico terá ainda muito trabalho para se apropriar e se empoderar sobre esse canto profético-popular de resistência e memória.

[1] Sarkasmo e Choco, com o disco “Para além do capital”, relatam a dimensão de “cura” do rap na música “Qual o sentido?”: Rap é uma terapia pra mim/ Nele eu me expresso trocando meus antidepressivos pela batida, enfim/ Faço por amor/Talvez nunca encha de dinheiro o bolso do investidor/ Mas e daí?” Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=kzhEsCELaKY>

[2] CARDOSO, Nanci. Cantando eu mando a tristeza embora… rap, reggae, hip-hop: tudo bíblias. Revista de Ciber Teologia. Disponível em: <http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wp-content/uploads/downloads/2014/09/artigoum.pdf>

[3] Mc Marechal em sua música “Espirito independente”, reflete sobre a autonomia do movimento e do próprio rapper. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=9IzEgoq7oUo>

[4] Mano Brown, por exemplo, ao falar do alcance do rap dentro das casas e famílias, e como ele transforma a postura do jovem que está em contato com a música, sendo ele branco, negro, rico, pobre, etc, diz: “Entrei pelo seu rádio, tomei sê nem viu. Nós é isso ou aquilo, o que, sê não dizia. Seu filho quer ser preto, Ráaa… Que ironia”. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=9IzEgoq7oUo>

[5] O repper Rashid na música “Abre caminhos” diz: “Precisamos de alguém que relembre a todos moleque que eles são reis também/E as minas são rainhas, que o Rap é machista, nois tá sabendo/Mas não é por que nasceu machista, que ele tem que continuar sendo”, entendendo a limitação histórica do rap, assumindo outra postura. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=hQcEl-OUZuo>

[6] Criolo regravou em 2016 o seu álbum “Ainda há tempo” (2006), e teve algumas de suas letras modificadas. Na música “Até me emocionei” ele troca a palavra “mulher” para “gente” no trecho “Amor que a gente dá nunca recebe no meu duvide/ Que já vi de gente feita se abrir por uma boneca da Hello Kit”. E também na música “Vasilhame” ele modifica o verso transfóbico “os traveco tão aí, oh! Alguém vai se iludir” por “o universo tá aí, oh! Alguém vai se iludir”, e fala à revista TRIP que já usou algumas rimas e palavras preconceituosas por ignorância. (Acesso em: 30/01/18) http://www.heloisatolipan.com.br/quotes/os-traveco-tao-ai-quinze-anos-depois-criolo-altera-letra-de-musica-transfobica/

[7] Conferir trecho da entrevista na Trip Tv, onde Mano Brown, um dos fundadores do grupo Racionais Mc’s, narra a vez que alguém colocou em seu show a música “Estilo Cachorro”, carregada de uma letra machista. E ele gritou: “Tira essa música (…) Olha o momento do Brasil”. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=LjUiDoQEb9o>

[8] O grupo Sintese, em sua música “Se escute”, evoca para o indivíduo uma grande responsabilidade pessoal, com elevado grau de autoconhecimento e sensibilidade de vida. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pJfh0Pyg6gw>

Bruno Rocha é palhaço, professor e pastor. Formou-se em bacharel em Teologia (FTBSP) e atualmente cursa Teatro (IFF). Seus temas de reflexão são: arte, educação, teologia da libertação e palhaçaria.

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