O retorno às fontes da revelação judaico-cristã

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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6 min readNov 25, 2019

Por Bruno Albuquerque

Caminho para superar o dualismo antropológico em um contexto de mudança de época

Este texto foi elaborado inicialmente no contexto da disciplina “Antropologia teológica I: Criação e pecado”, ministrada pelo Prof. Dr. Joel Portella Amado, a quem deve ser dirigido um agradecimento especial, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) durante o primeiro semestre de 2019.

Pe. Alfonso Garcia Rubio

Em sua magistral obra Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs, o teólogo Alfonso García Rubio situa a infiltração do dualismo antropológico na vida e na reflexão cristãs como um problema fundamental para a vivência da fé e o pensar teológico. Com efeito, não se trata de um desafio qualquer, mas de uma concepção que remonta aos inícios da cultura ocidental. Tendo sido elaborada especialmente por Platão e René Descartes[1], esta visão antropológica influenciou todo o desenvolvimento da filosofia e da civilização, deixando a marca de uma divisão dicotômica das dimensões do humano, concebendo-as em chave de oposição e exclusão.

Esta concepção dualista não faz parte da experiência cristã, constituindo-se como um dado extrínseco à revelação e um grande impasse a ser superado no campo teológico[2]. Para compreender as origens de sua esfera de influência no cristianismo, é necessário lançar um olhar às próprias origens da fé cristã, na passagem do mundo judeu para o helênico. Diante do impacto da experiência com o Ressuscitado, os discípulos saem em missão para anunciar o Evangelho no mundo grego. Nos desdobramentos históricos, os apologistas e Padres da Igreja fizeram a experiência cristã e a verbalizaram nos termos da cultura helênica. Tão arraigada estava a concepção dualista nesta última que acabou se infiltrando no cristianismo, à medida que este se inculturava, a ponto de deixar suas marcas ao longo de toda a sua história[3].

Na lógica da Revelação, torna-se evidente que a perspectiva judaico-cristã concebe o ser humano em processo de integração. O Antigo Testamento tem seu ponto de partida na experiência de peregrinação pelo deserto, onde o povo nômade experimenta que a relação pessoa-pessoa deve ser valorizada como sendo mais importante do que a relação pessoa-coisa. Nesse sentido, a antropologia teológica nos permite ler a narrativa da libertação do Egito como uma experiência fundamental, na qual o povo é liberto do regime de escravidão, em que as pessoas são tratadas como coisas. Esta experiência nos fornece importantes caminhos de indicação para a superação do dualismo, tendo em vista que a priorização das coisas em detrimento das pessoas sempre se encontra no fundamento da guerra e a priorização das pessoas em detrimento das coisas no fundamento da paz.

O contexto do Novo Testamento apresenta as tentativas de Israel para restaurar a nação única. A pregação e a ação taumatúrgica de Jesus, entretanto, apontam em outra direção, visando a uma experiência anterior à monarquia (aquela dos patriarcas) e, ao mesmo tempo, indicando um mais além (o Reino de Deus, presente “já” plenamente e “ainda não” completamente). Ao conviver com pecadores, prostitutas, doentes e endemoniados, Jesus mostra que Deus age pela graça e pela gratuidade. A novidade que ele instaura está no fazer acontecer que aqueles que eram excluídos sejam incluídos na comunidade, tendo sua dignidade reconhecida[4]. Sua atuação culmina no fato de que ele próprio é entregue para ser crucificado, tornando-se ele mesmo um excluído, e libertando o ser humano da mais radical experiência de exclusão — a morte. Se a morte tivesse a última palavra, seria a lógica da oposição-exclusão que venceria. A ressurreição, ao contrário, é a radicalização da lógica da integração-inclusão, onde a relacionalidade ocupa o lugar central.

À luz da Revelação, portanto, a reflexão cristã identifica claramente que a única condição para a dignidade da pessoa é que ela exista; ou seja, não podemos colocar nenhuma condição para que o ser humano tenha sua dignidade respeitada — em outras palavras, sua dignidade é inviolável. É inegável que existem processos culturais, sociais, históricos, econômicos e políticos que negam a dignidade da pessoa humana, mas a Revelação ilumina o cristão de modo a não compactuar com processos desumanizadores, cabendo à teologia resgatar na sociedade os processos humanizadores, na medida em que reconhecer o outro como pessoa é entrar em dinâmica de santidade e responder ao projeto criador, salvador e libertador de Deus.

A conclusão é inegável: a manutenção de uma concepção antropológica dualista se mostra insustentável frente à Revelação judaico-cristã. Trata-se de visões radicalmente distintas[5]. A crise atravessada pelo ser humano em um contexto de mudança de época, no qual as verbalizações se encontram em crise, exige da teologia um profundo e interessante trabalho de redescoberta das fontes originárias. O chamado “retorno às fontes” (Antigo Testamento, Novo Testamento e Tradição) possibilita o mergulho em suas verbalizações, procurando haurir delas as experiências que se encontram nas origens da fé cristã. Dito de outra maneira: à luz da Revelação, a teologia é desafiada a transcender as verbalizações em busca das experiências fundantes da fé que originaram as fontes da Palavra e da Tradição, possibilitando renovar os caminhos de acesso ao Mistério ao qual ousamos chamar de Deus[6].

[1] A antropologia dualista platônica opõe a alma (pertencente ao mundo das ideias) e o corpo (pertencente ao mundo sensível), acentuando negativamente as realidades materiais. No movimento de resgate da cultura helênica engendrado na aurora da Modernidade e do Renascimento, a antropologia cartesiana retoma as concepções gregas e opõe a alma como substância pensante (res cogitans) e o corpo como matéria espacial (res extensa), separando radicalmente o sujeito consciente de sua corporeidade.

[2] É necessário, contudo, diferenciar o dualismo antropológico do dualismo ético, uma vez que, diante do bem e do mal, o cristão sempre é convocado a se posicionar em chave de oposição e exclusão. Pactuar com o bem implica em rejeitar o pecado e suas estruturas injustas e desumanizadoras, buscando engendrar processos de humanização e, portanto, de justiça e integração.

[3] É preciso notar, entretanto, que o Magistério eclesial católico sempre defendeu a unidade fundamental do ser humano. Portanto, a presença do dualismo antropológico na vida e na teologia eclesiais apresenta um matiz mais moderado. Isto se deve ao fato de que, ao afirmar a fé em Deus Criador e na Encarnação do Filho, a Igreja nunca aceitou um dualismo que considerasse a matéria e o corpo como intrinsicamente maus, evitando, assim, uma contaminação radical pelo dualismo. Apesar disso, infiltrou-se um dualismo moderado, que conduziu os cristãos a frequentemente sobrepor uma dimensão humana e religiosa em detrimento da outra: a oração à ação, a fé à política, a Igreja ao mundo, o céu à terra, e assim por diante.

[4] É bela a maneira como a trajetória de Jesus é apresentada no Evangelho de João, onde ele pouco a pouco liberta as pessoas que se encontram com ele de todo tipo de impedimento à lógica da comunhão e do convívio, sejam eles impedimentos físicos (o sinal nas bodas de Caná), histórico-culturais (o encontro à beira do poço com a mulher samaritana), religiosos, jurídicos e morais (a misericórdia para com a mulher adúltera), biológicos (a cura do cego de nascença) e vitais (a reanimação de Lázaro).

[5] Algumas tentativas de superação do dualismo mostraram-se inadequadas, pois mantém intacta a estrutura mental da lógica opositiva: por um lado, o mecanismo da reversão dialética passa a valorizar o que antes era desvalorizado e a desvalorizar o que antes era valorizado; por outro lado, a justaposição estéril procura levar em conta as duas dimensões, porém as mantém em paralelo, sem articulação entre si.

[6] Trata-se, neste sentido, de um caminho radicalmente oposto ao do fundamentalismo, o qual, ao contrário, agarra-se à verbalização em detrimento da experiência.

Bibliografia

Rubio, Alfonso García. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2001. (Coleção Teologia Sistemática).

Doutorando em Ciência da Religião (PPCIR-UFJF), mestre em Psicanálise (PGPSA-UERJ), bacharel em Psicologia (IP-UERJ), pesquisa e escreve sobre o diálogo entre psicanálise e religião

www.institutomosaico.com.br

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