O show tem que continuar

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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3 min readApr 10, 2018

Por Victor Leandro

Foto: Michel Filho / Agência O Globo

O Regulamento Disciplinar do Exército, Decreto nº 4.346 de 26 de agosto de 2002, em seu Anexo I — Relação de Transgressões, item 57, afirma que haverá transgressão caso venha a “manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária”. Ou ainda, é vedada aos membros da corporação, no item 59, a possibilidade de “discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado”.

Mesmo assim, na véspera do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula no Supremo Tribunal Federal (STF), o Comandante do Exército brasileiro, General Eduardo Villas Bôas, usou o Twitter para assegurar a “todos os cidadãos de bem” o seu repúdio “à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia”, alertando que o Exército “se mantém atento às suas missões institucionais”. Tal intimidação, aliás, foi saudada por inúmeros generais da ativa e da reserva, por políticos, além de membros do poder Judiciário. O historiador da UFRJ, Carlos Fico, em entrevista ao Jornal O Globo, entende que “todos deveriam ser punidos exemplarmente. A manifestação desse general se insere no quadro de anomia, de quase suspensão da legalidade, que se instaurou com o atalho constitucional usado para afastar a ex-presidente Dilma Rousseff”.

O fato é que o recado foi dado: caso não houvesse o encaminhamento da prisão de Lula pelos ministros do STF, as Forças Armadas tomariam alguma providência. O tradicional fantasma do militarismo golpista retorna ao panorama político brasileiro.

Para todos aqueles que acreditam ser o Partido dos Trabalhadores (PT) o artífice da corrupção nacional, a confirmação da prisão de Lula foi encarada como uma vitória histórica. O antipetismo transformou-se numa patologia e não representa apenas uma repulsa à legenda, mas a rigorosamente todos os partidos de esquerda, bem como a qualquer pensamento proveniente deste espectro político.

Essa suposta revolta contra o que dizem ser a “impunidade brasileira” é falaciosa, hipócrita e não resiste ao mero exame dos fatos. Segundo a Folha de São Paulo, em matéria de 14 de janeiro de 2018, a Operação Lava Jato mantém 17 réus soltos mesmo após condenação na segunda instância. Nada disso, no entanto, parece mobilizar o sentimento de indignação de militares, políticos ou magistrados. Até porque o objetivo essencial sempre foi encarcerar Lula, ainda que sem provas.

No dia seguinte ao julgamento no STF, em entrevista à Rádio Jovem Pan, o presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores, afirmou que a prisão do ex-presidente só seria “possível a partir do esgotamento dos recursos do segundo grau” e que os advogados de Lula teriam até a próxima terça-feira (10/04) para apresentar novos embargos ao TRF-4. “Esses embargos deverão ser examinados pelo tribunal. A partir do momento e após o julgamento destes novos embargos, se forem interpostos, o relator do processo, […] aí sim, está autorizado a comunicar o juiz [Sérgio] Moro para eventual cumprimento da decisão”. Contudo, o TRF-4 fez exatamente o contrário do que o seu presidente havia declarado e autorizou Moro a decretar a prisão sem o julgamento dos novos embargos. Afinal, houve pressão por parte do Ministério Público Federal para a execução imediata da pena com o propósito de “estancar a sensação de onipotência” de Lula, bem como para evitar “movimentos manipulatórios das massas [que] atinjam níveis que tragam dificuldades extremas para fazer valer a lei penal”.

Trinta e três anos após a redemocratização, o atual quadro institucional brasileiro é sombrio e o Estado Democrático de Direito segue bastante debilitado. Dos quatro últimos presidentes eleitos, dois sofreram processos de impeachment e um está preso. A cada dia, a nossa mais profunda crise institucional não dá qualquer sinal de melhora. Mas nada disso importa. Contanto que a cruzada messiânica dos heróis do antipetismo patológico não seja interrompida. Embora macabro, o show tem que continuar.

Victor Leandro Chaves Gomes

Historiador e Cientista Político. Professor do Departamento de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais (DEI) da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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