O torcedor devoto

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readOct 27, 2018

Por Eduardo Campos

Foto: Juan Barbosa, Flickr

Nesta semana fui com meu filho ver o nosso time jogar, apesar de não estar merecendo a minha torcida. Afinal, os pais fazem sacrifícios pelos filhos. No entanto, fui sob o alento de uma esperança: uma bela jogada inesperada é maior que qualquer time de futebol. Tal pensamento me comoveu. Fomos.

A torcida era grande e estridente, e, por um momento, reparei que toda aquela comoção não buscava exatamente empurrar o time para o ataque. Eles queriam, na verdade, a diversão de ser torcedor, tanto que não se importavam com as caixas de isopor dos ambulantes que batiam em suas cabeças e obstaculizavam as suas vistas durante a partida. Bom mesmo era gritar irmanados com os demais torcedores e contra os torcedores adversários, duelando para ver quem tinha a grita maior, como quem disputa para ver quem tem a coisa maior que a do outro. Algo, então, me ocorreu: “Se esse juiz tão odiado pela torcida estivesse aqui no meio deles viraria carniça em poucos minutos”. Esse é um fenômeno que acomete quem está sob o “efeito manada”, porque, se estivesse sozinho, este não seria capaz de consumar esse voraz desejo expiatório e sanguinário. Ao lado das outras gentes complexadas, o torcedor sente que a sua coisa menor fica transitoriamente vultosa. Amenidades masculinas!

Esse frenesi de torcedor que se devota à coisa, possuído pelo vozerio das gentes, fez recordar-me de Guimarães Rosa, falando daquele que fora alertado sobre o acontecimento de uma falsa desgraça: “Manuel, corre a Niterói, tua mulher está feito louca, tua casa está pegando fogo”. Com esse aviso estridente e espavorido, o homem rumou de barca rapidamente para Niterói, mas, no meio do caminho, exclamou: “Que diabo! eu não me chamo Manuel, não moro em Niterói, não sou casado e não tenho casa”. Sem nome e sem destino próprios, os outros podem nos dar o selo e o endereço da multidão.

Por eu estar espiritualmente à parte, meu filho me lançou um olhar furtivo e risonho de reprovação, ao me ver mudo e inabalável durante a euforia daquela cantoria geral. Ele exclamou:

– Meu pai não torce!

Sem pestanejar, lhe respondi:

– Meu filho, papai não é torcedor: eu não sou deste time, “…não sou deste mundo”.

Seu olhar de reprovação revirou-se no espanto de quem vira um espectro diante de si. Restabelecido, ele debochou de mim falando obviedades:

– Pai, se liga, nosso time é o da esquerda.

Mas rebati meio de lado, dizendo:

– Meu filho, no momento, nem o da esquerda nem o da direita merecem a minha torcida.

– Então, pai, você não é nem um nem outro, torce pelos dois, está em cima do muro?

– Filho, eu não sou deste time: sou do time que sabe jogar de verdade, ou melhor, do time que dá gosto ver. Na verdade, quando vejo um time que dá gosto nem torço para não perturbar a minha alegria de somente ver. O gozo de ver é maior que o de torcer. Quem simplesmente vê tem até direito de torcer, mas tende a ser contido. Por outro lado, quem alucinadamente torce, talvez, não esteja vendo nada — fiz uma pausa e pensei comigo: “O frisson da torcida é o alucinógeno de um delírio acintoso esquecido de que fora acinte, conspirando para se manter nesse bem-estar ideológico. — prossegui responsivo — No momento, nem o da esquerda nem o da direita jogam bem. Talvez, no segundo tempo, eu prefira o da direita que era da esquerda ou o da esquerda que era da direita; quem vai me convencer disso é aquele que passar a jogar bem. Meus olhos não ficam estonteados com essa mudança súbita de lado. Não adianta: no instante da jogada, vejo apenas se ela é franca e bela. É dessa forma que o time merecerá a minha torcida, ou melhor, o meu devotado olhar contemplativo. Como não sou torcedor deste time, mas espectador de qualquer sincera e bela jogada (Não entenda a beleza dessa jogada como firula de “perna de pau”! Esse tipo de jogador não me engana!), o time adversário pode até me interessar mais. Meu filho, jamais se esqueça: a pior torcida é a do convicto, seja ela do time da esquerda ou do time da direita — depois disso, olhou-me interrogativo e continuou torcendo com sua juventude.

O jogo continuou. De um lado, o jogador pedalava sem sucesso, canetava sem completar e capava de calcanhar; por isso, as tentativas desse time não mereciam, a princípio, a devoção do meu olhar. Em contrapartida, do outro lado, os jogadores não erravam, mas apenas acusavam ao juiz o erro alheio ou faziam simplesmente o outro errar. Dava para ver que tinham um certo prazer nisso! Destilavam toda aquela delícia violenta de um Galígula: quando não se pode criar, sobra ao menos o poder de destruir a criação alheia. Eles lembravam aquelas voadoras de Junior Baiano na copa de 1998.

No fim das contas, não sabia para quem torcer, contudo, sabia para quem de forma alguma torceria: o time violento que, não sabendo jogar, não podendo criar, se move para destruir a liberdade criadora. Todo o time era uma retranca violenta por meio da qual nenhum espírito livre poderia passar. Ao dizer ao meu filho que de maneira alguma torceria para aquele time violento, ele acolheu-me contente como um potencial torcedor devotado, mas rabugento e desconfiado.

Eduardo Campos. Doutor em Filosofia (UFRJ), Mestre em Filosofia (UFRJ), Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ), Licenciado em Filosofia (UFRJ). Atua como pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ). Professor do Instituto de Psicologia Fenomenologico-Existencial (IFEN).

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