ODIAR É O VÍCIO DO NOSSO CRER

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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3 min readFeb 19, 2019

Por Dercinei Figueredo

Foto: Thomas Rüdesheim, Pixabay

“É, quanto mais fé, mais religião. A mão que mata, reza; reza ou mata em vão. Me contam coisas como se fossem corpos, Ou realmente são corpos todas aquelas coisas?” | Da canção “Desabafo” (2008) interpretada por Marcelo M. Peixoto (1967).

Sou um homem de 51 anos que nasceu como terceira geração de cristãos evangélicos batistas. Fui criado na Igreja. Por mais de 20 anos fui professor em instituições de ensino confessionais. Estou no exercício pastoral há mais de 25 anos. E, com tristeza e vergonha, digo: o ódio é um dos componentes fundamentais da fé judaico-cristã. Fé pública e coletiva que me ensinou, por exemplo, a odiar: os ateus, néscios; os católicos, idólatras; e os macumbeiros, demoníacos. Ódio se aprende e santo ódio também, a diferença é que este vem qualificado como “ira santa” ou “santo zelo”, ou sob a clássica impostura: “Odiamos o pecado, mas amamos o pecador”.

Talvez você não se dê conta disso porque — ou de acordo com o Zeitgeist, ou conforme a (vantajosa ou lucrativa) conveniência da hora –, regularmente, nossos cristianismos e nossas igrejas trocam o alvo do nosso ódio. Por exemplo, odiávamos a televisão e tudo o que era televisivo. Sim, xófem, nós demonizávamos a televisão, e ai daquele que gastasse o suor do seu rosto naquilo que não era pão, ou seja, na compra de “uma máquina de fazer doidos”.

Como éramos poucos e irrelevantes, ninguém dava a menor bola aos nossos ódios veterotestamentários. Entretanto, quando deixamos de ser minoria e nos tornamos milhões, quando nos empoderamos financeira e politicamente, quando tomamos de assalto os meios de comunicação de massa, não só levamos nossos ódios conosco, como também os armamos, e passamos a sincronizá-los com ódios mundanos (desde que populistas, obviamente).

Claro que existem movimentos de exceção e indivíduos extraordinários que amputaram o ódio da fé que vivem e pregam. Entretanto, majoritariamente, ainda odiamos. Então, quando evangélicos manifestam seu ódio contra o falecido Ricardo Boechat — e ninguém odeia de brincadeira ou de mentira — eles estão fazendo o que nos é próprio. Não é um anátema, não é um fogo estranho, não é algo que está onde não devia estar (quem lê, entenda o evangeliquês). Se nossa fé é uma forma de engajamento no mundo, então precisamos, com séculos de atraso, admitir e assumir nossos ódios, sob pena de nunca mais nos livrarmos deles.

Dercinei Figueiredo

Professorei por mais de 20 anos. Pastoreio há mais de 20 anos. Mas não sou Pastor ou Professor: “Não me pergunte quem sou, e não me diga para permanecer o mesmo.”

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