OLHARES: A PESTE E O TREMOR HUMANO

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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6 min readJul 8, 2019

Por Carlos Netto

Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A.Press

Em 1909 o psicanalista Sigmund Freud desembarcou nos Estados Unidos para realizar uma série de conferências. Conta Jung, seu companheiro de viagem, que Freud lhe disse: “Venho trazer-lhes a peste.” A psicanálise é uma espécie de antiutopia. Talvez a maior já conhecida entre as ciências humanas. Ela pretende ser o espelho do homem diante de suas ilusões sobre si mesmo. O Existencialismo caminha na mesma direção. Não há aqui crença na bondade fundamental do ser humano. Assim como, diferente das ilusões da modernidade, não parte do princípio do quanto o homem cresce, século após século, em sucessivas vitórias no seu processo civilizatório. A luta entre vida e morte — presente no mito grego de Eros e Tanatos — se decide dentro de cada um. Vida e morte individual e coletiva, pois sempre envolveu um Outro. A cada instante, decidamos ou não o que fazer. Sempre há um ato emergindo de e em nós.

Nos tornamos humanos frente aos nossos desejos, lutas e renuncias. Todo ser humano é, em certo sentido, mutilado na guerra que é viver. Mesmo na paz, enfrentamos a guerra provocada pelo entendimento que paz não é pasmaceira. Luta constante. Nem sempre o desejo humano é confesso ao Outro. Ou ainda, inclui o Outro como valor maior, não submetendo-o aos nossos próprios desejos. Não é tarefa fácil encarar nosso próprio olhar no labirinto de espelhos onde se apresenta os desejos inconfessáveis da nossa própria existência. Não são poucos os momentos que os evitamos. Nossa autoimagem é muito indulgente na maioria das vezes. Se ocupar dela pode doer, inibir e enfraquecer o movimento frenético de pedalar a construção social presente no cartão de visita, corporativo, que tiramos como identidade própria para nos apresentarmos ao mundo pelo cargo que ocupamos.

Dias atrás visitei famílias em Brumadinho. Ouvi muito. Foram vários relatos. Há espaços sociais, entre quatro paredes, que parecem não ensinar mais nada de tão significativo na vida. Nessas horas é preciso atenção. Mudar para crescer. Ou melhor, para viver: buscar aquilo que trará o aprendizado que dialogue com a vocação presente no oxigênio almejado pelo espírito. Conheci Dari Pereira em uma das visitas. Imagine sua casa destruída de repente. Família salva quase por milagre. Ou melhor, pelo saber e sensibilidade do homem da floresta que sabe o quanto árvores não “estalam” à toa. Fazer da experiência sua sobrevivência. Clareza na prioridade de deixar tudo que o dinheiro um dia comprou e centrar aqueles poucos minutos ou segundos na família a ser salva. Tempo incerto sobre o sucesso da ação e, ao mesmo tempo, a decisão tomada de arriscar a própria vida e salvar uma criança vizinha de apenas 3 anos com parte do corpo já coberta pela lama. No instinto de sobrevivência só restava a criança gritar. Alguém ainda estava ali para ouvir. A lama cobre o grito. Depois disso, ir para uma casa alugada pior que a sua. Aguardar cinco meses por solução. Ver que a solução não vem. Viver sem prazo para ter uma casa que volte a chamar de sua. Ter que provar, com documentos, tudo que foi arrastado da sua morada, mesmo afirmando que não teve condição de abraçar aquilo que não fosse sua própria vida e família. Ter dúvidas sobre a capacidade de sua causa ser julgada com justiça. Viver diariamente com o trauma da mulher e filhos. E o seu próprio que ainda não consegue dimensionar.

Desconheço executivo de grande empresa que tenha vivido tal situação. Acredito que Dari Pereira, protagonista do relato acima e morador do Córrego do Feijão, em Brumadinho, tenha muito a ensinar para executivos que se acham modernos por deixaram suas gravatas de lado, adotarem novas estéticas e repertórios, onde quanto maior a presença da chamada cultura digital, mais preparados se mostram ao mundo. Salas no última andar de grandes corporações não possuem marcas de lama. Ela chega por fotos, quando chegam, que parecem suficientes diante das soluções exibidas em Power Point. Dari Pereira não frequentará essas salas no último andar. Ele é, no máximo, um número exibido, talvez como problema a ser revolvido, cuja solução estará em alguma apresentação que dificilmente terá seu resultado refutado nos informes publicitários que esbanjam iniciativas de sucesso.

Dari Pereira esteve com o Papa Francisco. Os dois se olharam. Ele entregou fotos dos mortos no rompimento da barragem. Os olhos do Papa se voltaram para cerca de 200 imagens de seres humanos, nas fotografias, repletos de vida. São as mesmas que estavam no altar da Igreja Matriz de São Sebastião e, semanas depois, na Cruz de Pentecostes na entrada da mesma igreja. Ele segurou forte Dari pelo braço. Deu um abraço longo.

Papa Francisco recebeu hoje (3 maio), das mãos de Dari Pereira sobrevivente do crime da Vale em Brumadinho e Frei Rodrigo Péret da Rede Igrejas e Mineração e Grupo de Trabalho de Mineração da CNBB, as fotos com os nomes das 270 pessoas mortas, pelo crime da Vale. O Papa, emocionado, abençoou as fotos e expressou sua solidariedade às famílias que perderam seus entes queridos e à todos os atingidos. Foto: Custódia Franciscana do Sagrado Coração de Jesus

Perguntei se o Papa lhe disse algo. “Ele me abraçava e tremia”, respondeu. Tremer = apresentar tremores originados de emoção, medo e de fenômenos externos que se manifestam internamente. O que verbalizar? Tudo já parece claro entre os dois.

Dias depois o Papa Francisco pede ao Monsenhor Dupré que vá até Brumadinho e leve seu crucifixo prateado que guarda desde os tempos de Buenos Aires. Cristo não está crucificado. Na Cruz, o Cristo abraça como se trouxesse a humanidade ao peito. “Qual o significado da reação dele para você?”, em nova pergunta que fiz ao Dari. “O tremor dele mostrou o que sentia por nós. O meu tremor quando me vi salvo”, respondeu. Ninguém que provocou aquele rompimento ou responsável pela empresa, como executivo estatutário, o abraçou. Ou mesmo sentou para ouvi-lo. Olhares assim se cruzam com maior dificuldade. Tal incapacidade me ensina sobre o que cargos, posições e poder fazem ao ser humano. O crucifixo esteve na procissão, formada por pessoas da comunidade do Córrego do Feijão, barradas por entrarem em área privada na mineradora.

Lembro das cartas de Freud e do teólogo Oskar Pfister. Na psicanálise há incompatibilidade entre as produções ideais, presentes no universo da espiritualidade, que pressupõem a condição de superação narcísica do ser humano. Realmente o melhor da esfera religiosa está acima da compreensão da psicanálise. Mas em que termos identificamos aquilo que a espiritualidade tem de melhor? A ciência pode não ser o abismo entre o ideal e o real, ou a incompatibilidade entre ambas da sublimação e ilusão. Mistificação ou sintoma daquilo que vai de encontro a descrição e autópsia da psique como ópio. A espiritualidade pode oferecer contribuição na construção da crença que o homem deve ser desafiado em relação aos seus próprios instintos, sem que isso significa fuga da realidade. A utopia do possível. A paixão sacra pela superação do real sem tirar os pés do chão. A espiritualidade como o sonho da espécie humana que sofre consigo mesma.

Ao viver no mundo é preciso sonhar com ele para nele acordar e andar. A espiritualidade é o sonho que nos alimenta diante dos nossos tremores de abraços em abraços. As frustrações da vida são pródigas. Mas os sonhos nos fazem resistir. Se a matéria humana é misteriosa, ela também guarda condição de nos surpreender porque é soberana diante da razão que caracteriza a originalidade humana frente aos animais irracionais submetidos pela natureza. No princípio era o sonho. E o sonho se fez carne e habitou entre nós para que também nossa carne pudesse se mover rumo ao sonho, onde tenhamos nós a capacidade de transcendência além do narcisismo autoindulgente do ser humano. Viver a empatia necessária de nos colocarmos no lugar do Outro, sinal de esperança para a grande insônia dos inconformados. A espiritualidade treme. A materialidade do ser corporativo precisa estar rígida como macho alfa dominante e confiante, haja o que houver. Talvez o mundo precise de executivos capazes de tremerem diante de um abraço. Só assim haverá esperança para além daquilo que “a peste” nos diz sobre nós mesmos. Ou o diálogo capaz de unir Freud e Pfister.

Carlos Netto

Bacharel em História (UFF), mestre em História Social (UERJ), mestre em Ciência da Informação (UFRJ), Doutor em Psicologia (USP) e Pós-doutorando em Comunicação Social (USP). Pesquisador associado da Universidade de Coimbra, Portugal. Professor da FIA-USP. Coordenador do trabalho voluntário A Arte Abraça Brumadinho. Membro do Conselho da Fras-le, em Caxias do Sul. Foi diretor do Banco do Brasil por 7 anos.

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